sábado, 25 de dezembro de 2010

Sonhado

Desde que me lembro, nunca pude sonhar. Não sei se é uma doença, se me foi ensinado quando era criança, ou se é fruto de alguma evolução humana, dessas que nos fizeram ter menos dentes: talvez o sonhar tenha se nos tornado completamente inútil.

O fato é que meu sono, sem o sonho, é como que também ausente. Quando fecho os olhos, à noite, e os abro já de manhã, é como se nem um minuto tivesse passado; um espaço em branco no qual o tempo não consegue penetrar.

Dessa forma vivo numa existência contínua, sem nenhum intervalo do nada. Vejo tanta coisa, o tempo todo, que tudo já está embaraçado, e o que deveria ser real e nítido é para mim como uma neblina, um ar tão visível que não nos deixa ver nada.

Esse mundo embaraçado me faz perguntar se não sou somente o sonho do sonho de algum homem, que, por um limite de desdobramento, me impede de sonhar.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Dilúvio

Dizem (Ele disse) que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Não creio que isso seja verdade. Se o fosse, seríamos capazes de recriar os milagres divinos, mesmo que em escala reduzida, o que não é efetivo. Exemplifico.

Lembro-me bem do Dilúvio; Deus, entristecido com o rumo da humanidade, teve um momento de fraqueza e deixou escapar um soluço, que, embora abafado, foi incapaz de controlar uma lágrima que escorreu pelas barbas infinitas e caiu na terra, inundando o mundo.

Poucos de nós nos salvamos. Dos que escaparam às águas, muitos se foram por conta da miséria decorrente dos dias passados em meio a um inesgotável azul, sem vermelho, nem verde.

Mas a minha miséria foi ainda maior; pois, além de padecer na fome a na dor, tive de assistir ao lento morrer das pessoas que conhecia e amava.

E chorei. Por muito tempo, mesmo depois de seca aquela lágrima, divina, derramei as minhas, mortais, supostamente irmãs daquela, mas que não foram capazes de afogar nem minhas mágoas.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A revolução dos bichos

Conta-se que num futuro próximo os bichos, cansados de sua longa existência de exploração nas mãos dos homens, terão se organizado numa tentativa de revolução que demandava os direitos, agora não exclusivamente, humanos.

Assim aconteceu de nos zoológicos, nas fazendas, nas casas ou nas ruas os bichos se unificarem pela paralisação, até que suas exigências fossem cumpridas, das suas atividades, fossem estas as de entreter ou alimentar, ser amado ou maltratado.

Diante da declarada revolta dos bichos o mundo humano acabou por se atordoar, não tanto pelo medo do desastre, em termos de entretenimento, alimentação, saúde emocional e exercício de crueldade, que tal paralisação poderia ocasionar, mas mais pelo azedo incômodo que seria ter de mudar o lugar em que lenta e confortavelmente ele tratou de se acomodar.

Foi por isso que, após algumas poucas discussões jurídicas promovidas pelos fóruns internacionais, ficou decidido a inconstitucionalidade da revolução dos bichos.

O resultado disso nada teve de novo: uma repressão pacífica que começou com escudos se erguendo e terminou com os cassetes descendo.

E é por isso que num futuro não tão próximo ainda teremos coisas como bacon. Porque, desde aquele último dia de sua revolução, os bichos decidiram que, diante da inevitabilidade do golpe, melhor seria que este fosse apenas um, derradeiro.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Cavalinhos Gregos ganha prêmio literário

É isso aí pessoal: este humilde blog foi agraciado com a honra de receber o Prêmio Dionei Tavares de Literatura Fantástica (categoria blog). Fico muito feliz por ter recebido o prêmio, mesmo com tão pouco tempo de blog e com grandes intervalos entre as postagens. Agora fica uma obrigação moral de continuar produzindo e com maior frequência!

Queria agradecer a todos os que votaram no Cavalinhos Gregos e a todos os que participaram comigo aqui no blog. Em especial, queria agradecer ao amigo (irmão) Igor Martins, tanto por ter participado com bastante ânimo, quanto por ter me incentivado a inscrever o blog no prêmio. Sem ele (Igor) esta vitória não existiria.

Por último, quero agradecer a todos aqueles que acompanham este pequeno recinto do insólito e perdem seu escasso tempo lendo as fantasias que vamos criando. Muito obrigado e continuem acompanhando o Cavalinhos!

Abraços,

Lucas Antunes, fantasiando.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Pandora

Ela era tão bonita que quando surgiu todos os homens solitários se apaixonaram. Loucos, cada um tentou o que pode para conquistá-la, doando-se no que mais tinha para provar seu amor: os poetas fizeram odes, os músicos canções; os comerciantes deram-lhe o que vendiam, os ricos o que compravam; os políticos fizeram-lhe promessas, os líderes cumpriram-nas; os ladrões deram-lhe todas essas coisas, os suicidas suas vidas.

Mas dela nenhum teve resposta; e, loucos, decidiram que somente destruindo uns aos outros terminariam com aquele silêncio. Assim, os poetas fizeram troças, os músicos paródias; os comerciantes cobraram caro, os ricos pagaram em dobro; os políticos difamaram, os líderes exploraram; os ladrões tiraram-lhes tudo, os suicidas mataram-se.

Ela, contudo, assistira a toda essa desgraça calada. Podia ser que não amasse ninguém, ou que amasse a todos; podia ser que fosse muito recatada, ou tão devassa que se deliciasse com a tragédia; podia mesmo ser que fosse muda ou que tivesse gritado, chorado e implorado para que eles parassem. O fato é que jamais se saberá. Pois aquilo que sem querer abrira no coração dos homens era tão podre que lhes devorara todos os sentidos.

sábado, 2 de outubro de 2010

Clube da Utopia

Foi por um acaso que eu o achei, quando entrei, procurando fugir do calor, em um pequeno boteco no centro da cidade pra tomar uma coca. Caminhei até o balcão e pedi o refrigerante, que veio servido num porta-copos que julguei esquisito. Olhando-o melhor, vi que se tratava de um porta-copos muito mais requintado que o lugar supostamente teria, com o desenho de uma ilha pintado em aquarela, e, bordado em letras elegantes, as palavras “Clube da Utopia”.

Intrigado com aquilo, resolvi observar melhor o ambiente, e, para minha surpresa, vi os maiores líderes mundiais reunidos naquele boteco velho. Bebendo e fumando preciosidades, eles discutiam como cada um gostaria de ver seu país: um dizia que queria que lá só houvesse brancos; outro, que a industrialização chegasse a todos os setores; alguém disse que queria festa o ano inteiro; seu interlocutor, torcendo o nariz, queria que o cristianismo fosse levado a sério. Cada um construía sua utopia própria e imaginária, sem levar muito em conta qualquer maneira de torná-la real.

Após um tempo, finalmente notaram-me, e, vendo um novato, ficaram curiosos em saber minha utopia pessoal. Disse-lhes que era básica, uma sociedade justa, pacífica e igualitária, onde todos pudessem ser felizes de verdade. A resposta deles foi um olhar incrédulo, como se não conseguissem meu raciocínio; concluí perguntando, ora, não é esse o propósito da utopia original? Dessa vez os olhares ficaram neles mesmos, constrangidos, mas logo alguém pigarreou e a conversa voltou ao princípio.

Voltei alguns dias depois ao mesmo boteco, mas os líderes não estavam mais lá; acredito que o Clube não possua sede fixa. Contudo, minha coca foi servida num daqueles porta-copos esquisitos, só que um pouco diferente: a pintura da ilha era a mesma, o bordado agora dizia “Clube da Egotopia”.

domingo, 29 de agosto de 2010

Salvacionismo

Os primeiros deles chegaram ao Velho Mundo montados em serpentes marinhas de centenas de metros e em gigantescos pássaros canoros, que já anunciavam, com seus assobios doces, um outro lugar onde a vida nunca era velha. A primeira coisa que fizeram foi mostrar aos tão civilizados europeus que aquele deus do qual eles tanto falavam ou não existia de fato, ou havia escondido um bocado de coisas dos seus filhos. Tudo é assim lá, disseram os primeiros deles, essa coisa que vocês chamam magia só existe onde ela não é possível.

Mas nem tudo foi novidade. Sentindo-se ameaçado, o Velho Mundo tentou combater aqueles que vinham de longe com suas armas, seu ódio e seu discurso alfabetizado. Mas logo outros vieram, montados em novos seres, com tintas a prova de balas, canções de guerra e chuvas, fogos e raios em suas mãos.

Logo seus inimigos caíram um a um, os mais fortes deles sendo devorados; porém seus aliados casaram-se com suas filhas e filhos. Os europeus perceberam que, de um modo ou de outro, eles eram um povo se miscigenava, e não viram outra opção além de se render e se unir. Mas não perceberam que, para eles, união era uma escolha e não uma obrigação.

Foi na liberdade da escolha que se amaram. E assim eles, de canto algum, nos salvaram da civilização.

domingo, 22 de agosto de 2010

É o pâncreas!

O dia começou cedo hoje. Partimos ainda no escuro indo direto pro hospital. O difícil era entender o problema de Tânia, sempre a se segurar nos meus ombros, gemendo e grunhido coisas difíceis de traduzir. E a meio caminho ela grita: é o pâncreas! Achei tão repentina sua atitude que parei de sopetão esperando que ela me falasse como chegou a tamanha conclusão. Ela sem muita demora volta a gemer e grunhir e como acredito ser o certo a fazer nesse caso, não dei a mínima ao ocorrido. Foi assim que conseguimos caminhar em torno de 5 quarteirões, já que o táxi não apareceu a tempo. Ela ficava cada vez mais enrubescida e eu mais preocupado apesar de calado, não sabia bem o que dizer. Dor sempre é um acontecimento que nos tira a paciência e no caso dela parecia ser violenta. Ao entrarmos naquele ambiente esterilizado do hospital sentindo o frio do ar-condicionado no extremo ela simplesmente para e olha pra mim perguntando: o que fazemos aqui? Eu, admito, não soube o que responder. Foi quando tive a impressão de já tê-la vista naquele estado, mas não saberia dizer quando e nem como. Ela então volta a olhar o hospital e quase que escandalizada como se eu tivesse falado as piores coisas da vida sai bufando em passos pesados. Admito que passei alguns segundos para absorver aquilo, mas não tive escolha quando vi que de fato ela estava indo embora. Corri assim os 5 quarteirões de volta para casa vendo ela sempre a frente puta da vida. Ao entrar em casa tira toda a roupa e cai na cama como se nada tivesse acontecido. Eu me aproximo calado, pois não tinha idéia do que era aquilo e em seguida ela se vira abrindo os olhos, falando: o que foi querido? Acordado a essa hora. Venha pra cama... o que está fazendo ai parado? Está me assustando! Venha...

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Tânato, oficial de justiça

Mais um dia rotineiro de trabalho. Levantar cedo, me aprontar, sair, fazer meu dever, voltar, esperar o dia de amanhã. Sem brilho, sem calor, sem vida: tédio.

Não existe poesia no que faço, ao contrário do que disseram tantas pessoas, algumas delas tristemente inteligentes e erradas. Não existia ontem, com a religião, não existe hoje, com o ceticismo, e não existirá amanhã, não importa o que qualquer possível dialética consiga trazer.

Veja esse sujeito: bebendo seu vinho solitário, um prazer fugaz e que, no entanto, lhe trará o doce da vida à boca. É tanto que quando me percebe, percebo eu que algo lhe fica bambo por dentro. “Está na hora já?”, pergunta ele, e como resposta apenas ofereço minha expressão habitual de tédio. Me oferece vinho, recuso, ele diz que não quer ir. Penso em dizer-lhe que não tenho culpa, apenas cumpro ordens, sou apenas uma ramificação do sistema, mas, cara, não tenho o menor saco pra essa conversa de novo – além disso, eles nunca entendem. Mas ele, de supetão, quebra a garrafa, levanta-se e grita a plenos pulmões. A ironia daquilo me surpreende, e até me faz rir um pouco. Levanto, balanço a cabeça e vou embora dizendo meu bordão: ê trabalho de merda.

Quem lê o blog deve ter percebido que esse texto é uma outra visão do último texto de Igor. O interessante da reescritura é perceber a leitura do texto original que ela revela. Espero que Igor não fique chateado, hehehe.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Ainda não

Eram 22h, domingo. A semana iria começar. Estava sozinho no apartamento jogado no sofá. Molemente, eu passava os canais, quase sem ver. House, Friends, jogo do brasileirão, Crepúsculo dublado, Transformers. Tudo tão estúpido, sem sentido...

A internet não funcionava. Devia ser o vento ou a chuva. O chuveiro queimado eu não precisava naquele momento, depois daria um jeito. Aquela louça suja fingi que não era minha. Essa minha barba está ridícula, pensei. Mas isso é vaidade, chega desses sentimentos mesquinhos.

Resolvi tomar um pouco de vinho. Tinto seco, Merlot. Cor intensa, encorpado. Trouxe a garrafa pra sala, tomaria no bico, não tinha copo limpo. Me sentei no sofá e percebi que possuía companhia. Fiquei em silêncio, pensando no sentido daquilo. Nem olhei para o lado, já sabia quem era. Tomei um gole longo. Ela estava em seu traje habitual, bem à vontade. “Está na hora já?”. Ela apenas sorriu medonhamente. Ofereci um gole, e não obtive resposta. “Não quero ir, o tempo passou rápido demais.” Lembrei como é bom viver. Então quebrei a garrafa, levantei, dei um grito com todas as minhas forças. A Morte se levantou também. E simplesmente foi embora, satisfeita.

De Igor F. Martins, de novo, se garantindo.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Inverno é o novo verão ou A moda glacial

Todos adoravam o clima quente da cidade: o mar ficava mais lindo, a roupas mais leves e bonitas, os sorrisos mais brilhantes, o calor humano contagiava as relações.

Menos o Geraldo, que odiava o calor. Até o dia que encontrou uma lâmpada com um gênio e etc., e pediu que a cidade mudasse completamente o clima. E na manhã seguinte a neve cobria as ruas e o vento entrava frio pelas janelas.

Não demorou muito para a mudança de atitude: o turismo começou a explorar a beleza das paisagens embranquecidas, a moda dizia que roupas de inverno eram mais elegantes, o clima frio tornava as pessoas mais sóbrias e intelectualizadas, finalmente fazia sentido tomar um café expresso com seu cachecol enrolado no pescoço, até o mar ficara mais bonito, mais poético, mais velho mundo por assim dizer. E logo o clima quente foi repudiado e encarado como bárbaro, enquanto que todos os setores da sociedade continuavam felizes e orgulhosos.

Só os moradores de rua que não ficaram muito felizes com a mudança drástica na temperatura. Mas como eles rapidamente morreram de hipotermia, isso nem foi levado em consideração – melhor, a cidade ficara ainda mais bela sem eles, logo esquecidos, como o verão.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Só mais outro romance pós-humano

Eles se conheceram num chat do cyberespaço. Em pouco tempo configurou-se um desses relacionamentos virtuais tão comuns: apesar de residirem em locais distantes um do outro se encontravam todos os dias, combinavam em muitas coisas, sentiram-se apaixonados e decidiram, finalmente, namorar. Nada fora do comum e ao mesmo tempo tão singular, casual e destinado, corriqueiro e especial; enfim.

A distancia física era contornada graças aos avanços do avatar neural. Nenhum dos dois era inocente, e bem sabiam que os corpos esculturais que portavam e que sentiam não correspondiam aos originais que se conectavam à rede. E apesar de toda a tecnologia e precisão sensorial, concluíram que seria melhor a realidade, mesmo com suas imperfeições.

E foi com grande surpresa que, ao se encontrarem pessoalmente, descobriram que ela era na verdade ele e que ele era na verdade ela. Contudo, apesar de toda a decepção inicial, raciocinaram que não havia motivos reais para se separarem. Há quem diga até que vão se casar, mas cada um usando seu próprio computador, em sua própria cidade.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O cavalo

Esses dias eu voltava pra casa quando me deparei com um cavalo comendo o lixo do meu prédio. Era um cavalinho muito magro, do pelo marrom cheio de falhas, a crina grande caindo triste pro lado. Fiquei com pena daquele pobre animal e perguntei se ele não queria subir para comer algo decente. Ele me olhou com os olhos marejados e aceitou de pronto meu convite.

Lá em cima esquentei o que sobrou do almoço e dei pro cavalinho, que comeu vorazmente. Depois de satisfeito, contou-me sua tragédia: vinha de uma fazenda do interior, onde vivia com sua família. Mas quando uma seca levou tudo, só restou ao cavalinho uma promessa de trabalho na cidade grande. Acontece que o tal trabalho era o de carregar uma carroça, e todo dia ele era espancado pelo carroceiro para que trabalhasse melhor. Cansado de apanhar, decidiu largar o emprego, e agora não tinha nem o que comer, nem como voltar pra o interior.

Comovido, dei-lhe dinheiro para que comprasse uma passagem de volta. O cavalinho, chorando, abençoou-me, e foi para a rodoviária, comprar sua tão sonhada passagem.

Dias depois, estava indo comprar pão quando vi o mesmo cavalinho, sentado no chão com os olhos vermelhos, uma garrafa de cachaça do lado. Nossos olhares se cruzaram rapidamente, mas ambos, condescendentes um com o outro, fingimos não nos ver.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A escada

Certo dia, lá no início dos tempos, Deus sentiu grande curiosidade e quis ver o que se passava com Sua criação lá na Terra. Para poder descer dos Céus ele começou a construir uma comprida escada de madeira, o material mais resistente – e, portanto, mais seguro - que se conhecia naquele tempo, a fim de poder ver melhor o que Seus filhos andavam aprontando.

Mas quando os homens viram aquela imensa escada e perceberam que era o Senhor que estava vindo para fiscalizar o mundo, ficaram revoltados – e com razão, já que não é só porque se é pai que os filhos devem aceitar a visita de quem nunca dá notícias, nem demonstra carinho, nem ajuda com as dificuldades da vida. Por isso esperaram a escada ficar o suficientemente próxima do chão para tocarem fogo nela e estragar os planos de Deus.

Este, claro, ficou divinamente irado. E para que nunca mais os homens se juntassem para atrapalhar Seus planos, deu uma língua diferente para cada um dos envolvidos, de modo que eles jamais se entendessem novamente.

O que contam por aí, de fato, é outra coisa. Sem conseguirem se entender, os homens acabaram deixando essa coisa de Torre vigorar. E o caso perdido da Escada de Babel hoje em dia só serve como mais um exemplo de como a história é manipulada pela força dominante.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A solução de quem não quer perder aquilo que já tem

O rapaz leu Memórias Póstumas de Brás Cubas, do Machado de Assis e saiu repetindo, maravilhado: “ao vencedor, as batatas!” Em seguida, leu Quincas Borba para aprofundar-se no Humanitismo.

Decidiu cursar filosofia. Leu tudo sobre o assunto competição. Preparou resenhas, escreveu artigos científicos, apresentou palestras, tornou-se um especialista na área. Conheceu Diógenes, o Cão, largou a faculdade e foi morar em um barril.

Também gostava muito daquele verso do Los Hermanos: “Eu que já não quero mais ser um vencedor”. Então ele teve a epifania: os males da nossa sociedade vinham da competição entre os homens.

Resolveu criar uma religião que desprezasse qualquer contenda. Seria a redenção do homem pelo homem. Foi tachado de comunista, de perdedor, de arrogante.

Hoje ele luta para que sua religião ganhe notoriedade e a humanidade conheça a verdadeira felicidade através de seus ensinamentos, mas não tem dinheiro para publicar seu livro, e seus amigos querem assistir à Copa.

Do mano Igor, autobiográfico, talvez?

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Olhos

A primeira vez que a viu ainda era pequena: deitada em sua cama tentando dormir, ela viu a mulher aparecer na porta do quarto, metade do corpo coberto pela parede, muito branca e mirando-a fixamente sem olhos. A menina fechou os olhos e rezou para que aquela mulher sumisse, mas ela continuava lá quando a menina voltava a olhar. Como isso se repetia, seus pais levaram-na ao médico, que receitou remédios para fazer desaparecer a assustadora mulher. E por um longo tempo ela se foi.

Em sua adolescência, e já sem remédios há algum tempo, a mulher apareceu novamente, agora a meio caminho entre a porta e a cama, ainda com dois buracos na face, ainda fitando-a. Apavorada, a jovem voltou ao médico, que novamente receitou-lhe medicamentos. Após um tempo de desespero, mais uma vez a mulher sem olhos desaparecia sem deixar vestígios.

Agora casada, a mulher voltara, dessa vez com o rosto quase colado no dela, os buracos parecendo sugar-lhe a alma. Mas agora os remédios não tiveram efeito algum.

Foi numa noite em que dormia sozinha que chegou ao limite. Alucinada, arrancou os próprios olhos para nunca mais ter de ver aquela coisa terrível outra vez.

O marido ainda chegou a tempo para salvá-la da hemorragia. Mas seus olhos extraídos nunca foram encontrados.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Quimera

Do meu pai eu dupliquei seus braços. Eram ágeis, precisos, decididos. Julguei também que me seriam úteis para me ajudar a levantar, caso caísse.

Pouco depois, dupliquei o coração da minha mãe. Em meu peito agora cabiam muito mais sentimentos do que eu poderia imaginar, muito mais vida.

Meu melhor amigo era muito corajoso, e aquilo me encantava. Com a duplicação do seu tórax aprendi a andar erguido, sem receio do que eu estava sendo.

Da minha primeira namorada, dupliquei suas pernas, longas, lisas, as mais lindas que existiam no mundo.

No final do colégio um professor em particular me ensinou muito quando dupliquei sua cabeça.

Essas foram as primeiras partes que dupliquei em mim de outras pessoas, e hoje, passados tantos anos, ninguém consegue mais distinguir a diversas partes de outras pessoas que compõem essa colcha de retalhos humana que sou.

No entanto, sei que poucas pessoas no mundo podem dizer que se conhecem tão bem quanto eu me conheço.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Encruzilhada

José Gumerciano desde pequeno queria ser repentista. Quando criança o pai o levava para assistir os duelos de repente, e o conhecimento imenso daqueles artistas o encantava. Sobre tudo eles versavam da forma mais bonita possível, tudo encaixadinho nas fôrmas que eram obrigatórias. Mas conforme José Gumerciano foi crescendo, percebeu que nunca conseguiria cantar sobre tanta coisa como esses poetas faziam, pois de muito pouco sabia.

Foi então que ele decidiu que iria ser repentista a qualquer custo. Foi numa sexta feira 13 de meia noite a uma encruzilhada e invocou o Diabo, que lhe perguntou o que queria.

- Ser o maior repentista do mundo. Quero saber de tudo pra poder sempre ter o que cantar!

- Tudo? – sorriu o Diabo ironicamente e disse “Fiat Lux” – E Gumerciano se iluminou.

Mas qual foi a decepção de Gumerciano ao perceber que, apesar de saber sobre tudo e ter as reflexões mais profundas sobre tudo, não conseguia colocar isso num poema. E então ele entendeu sorriso do Diabo, que, poeta maldito por excelência, sabia muito bem que poesia não é feita de idéias – mas sim de palavras.

Hoje qualquer um conhece José Gumerciano: todos os anos ele ganha todas das categorias do prêmio Nobel. Menos o de literatura e o da paz, que ele jamais conseguiu encontrar.

Só como suplemento, queria deixar um video aqui que ilustra um pouco o texto, refletindo sobre o que o pobre Gumerciano só conseguiu entender pela metade.


domingo, 16 de maio de 2010

O homem transparente

A primeira atitude que tomaram quando se notou que ele começava a ficar transparente foi tirá-lo do cargo de chefe de relações públicas. Não era mais cabível que alguém no seu estado atual continuasse a lidar com pessoas, e em seu lugar colocaram uma jovem executiva que brilhava em todas as tonalidades possíveis. Mas, talvez por acreditarem no seu potencial como funcionário, não foi despedido, apenas transferido para um setor mais impessoal, revisando papéis numa sala escondida aonde pouca gente ia. Tudo bem, ele pensava, assim que eu melhorar, poderei voltar ao cargo que é meu por direito.

Mas para seu desgosto, a situação só se agravava. Conforme passava o tempo ele ia ficando mais translúcido, como se virasse um fantasma que luta pra ser notado pelos entes queridos. Certa vez ele se olhou no espelho e se reconheceu, mas não se viu.

Um dia perceberam que ele não havia ido trabalhar, o que era estranho para um funcionário responsável como ele. Ligaram para sua família, mas de lá informaram que ele não tinha voltado para casa após o expediente.

Ou talvez ele tenha voltado, e continue trabalhando e pagando as contas de casa como sempre fez, porém ninguém consegue notar. Mas isso não há como se saber.

domingo, 9 de maio de 2010

Amor tantalônico

Tântalo foi aquele cara condenado por Zeus a ficar em um pequeno poço por toda a eternidade passando fome e sede. Sempre em pé, tentava tomar a água que lhe batia no queixo, mas ela escoava; tentava pegar os frutos ao alcance de seu braço, mas o vento afastava-os. A eternidade é muito tempo, por isso ele foi liberto do flagelo. Magro e desidratado, foi acolhido por um Velho e por sua Bela Filha.

Após tanto tempo sofrendo, aprendeu que não podia ter tudo o que queria. Contentava-se com o pouco que lhe era oferecido. A sopa vinha sem carne, o pão era duro, o copo com água tinha restos de Nescau.

A Bela Filha apaixonou-se por ele, um semi-Deus, ex-predileto dos deuses, porém entendeu que não merecia ser correspondida.

Hoje, Tântalo não é mais rei, e namora a Rosângela, uma garota feia e sem atrativos, porque tem medo de ficar sozinho.

Do grande Igor F. Martins, crítico literário desempregado e escritor ninja.

domingo, 2 de maio de 2010

Dragões

Eu costumava sonhar pequenos dragões todas as noites. Nos meus sonhos eles eram de todos os tamanhos, formas e cores, voando e soprando fogo de um lado para o outro como se brincassem de fazer espetáculos de piruetas pirotécnicas, algo meio circense, meio conto de fadas.

Mas quando eu prestava atenção nos rostos deles, sentia um calafrio que me deixava nervoso, pois todos ostentavam um sorriso de ironia maligna. E quando percebiam minha inquietação davam pra gargalhar perversamente, girando no ar em meio a um caos de fogo.

Certa noite um desses dragões escapou do meu sonho e, rindo maldosamente, colocou fogo em minha casa. Ainda consegui escapar do incêndio com vida, mas perdi tudo o que havia conseguido juntar em todos esses anos.

Hoje em dia eu já consigo dormir a noite toda, mas, por medo dos dragões, deixei os sonhos para trás.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

A menina de um olho só

Ela nascera apenas com um olho só, filha de uma árvore com uma pedra. Herdou da mãe a paciência e do pai a dureza.Aprendeu a falar com um ano de idade, aos dois anos de idade falava oito línguas e descobriu que era a reencarnação de Guimarães Rosa, aos três anos de idade foi agraciada com uma cadeira na academia brasileira de letras tornando-se uma imortal, substituiu Paulo Coelho que renegou a literatura e abriu uma loja de conveniência na Rússia. Além dos seus dotes lingüísticos e literários era uma profunda conhecedora da vida provando que para melhor enxergar bastava um olho só e com isso atraindo multidões que vinham lhe pedir conselhos de todas as partes do globo terrestre e ás vezes alguns visitantes interplanetários também marcavam presença. Aos sete anos de idade teve uma crise existencial e decidiu ir meditar no morro do alemão ao som de balas e pagodes, um ano depois alcançou a iluminação, arrancou o único olho com o qual nascera e o jogou na Baía de Guanabara, seu gesto de revolta nunca foi esquecido e ergueram no corcovado um monumento a menina de um olho só, onde milhares de pessoas vão todos os anos pedir uma graça ou uma iluminação.

Fim

De Clovis

terça-feira, 20 de abril de 2010

A revolução dos vivos

Num futuro próximo a ideologia terá tomado tamanha proporção e de tal forma convertido os fatos históricos em fatos naturais, que a ação revolucionária por excelência será uma recusa da própria natureza no que nela há de mais inevitável: a morte. Assim, várias pessoas que lutavam contra a ordem vigente do mundo simplesmente pararam de morrer.

Não demoraram para serem tachados de subversivos, e o discurso oficial pregou que ser imortal era ser contra o Estado. A imprensa, tentando colocar o povo contra os revolucionários, produziu uma série de reportagens que denunciava a falta de caráter destes. Criou-se um slogan: Imortalidade é imoralidade.

Apesar de tudo, o movimento não cessou, e pouco a pouco mais pessoas iam se juntando ao grupo, de modo que em algum tempo, finalmente conseguiram eleger um candidato do PI (Partido dos Imortais) a um cargo importante do governo, cheio de promessas de mudança.

E com ele, mais tarde, chegaram outros. Muitos outros. As mudanças prometidas, contudo, jamais chegaram.

Um dia descobriu-se que o líder do partido tinha câncer de estômago. Morreu em menos de dois meses depois de receber a notícia.

domingo, 11 de abril de 2010

BBO – Big Brother Olimpo

A TV, visionária, resolveu fazer um desses reality shows onde trancam um grupo de personalidades numa casa, mas com um grupo diferente: somente criaturas mitológicas gregas. Foram, assim, convidados Hercules, Afrodite, Pégasus, Medusa, Aquiles, Apolo, Helena, Esfinge e Tirésias. Começado o jogo o público foi tratando de eliminar os que menos gostava. Pégasus saiu logo porque ficava, por assim dizer, o tempo todo com cara de cavalo. Esfinge foi a segunda, ninguém entendia nada do que ela dizia. Atenas e Apolo não conquistaram o público por serem considerados “metidos” demais. Tirésias trouxe pra si o apoio da comunidade GLTS, mas a maioria preconceituosa o eliminou. Aquiles teve um romance com Helena, apesar de a moça namorar um rapaz que sacrificara a pátria pelo seu amor, o que causou revolta no público que tratou de tirá-los logo que pôde. Na final sobraram os sarados Hercules e Afrodite e a feiosa Medusa, que por sinal acabou levando o prêmio. Isso porque, apesar de ser uma górgona antipática e desagradável, a produção do programa, cortando cenas aqui e editando acontecimentos ali, pintou-a como a mais justa e honesta de todos os participantes. O motivo era simples: apesar dos seus inúmeros defeitos, quando ela aparecia, o público simplesmente ficava petrificado em frente a TV.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Ao nascer do sol

O Homem dirigia rapidamente, pois tinha pressa de chegar ao pequeno sítio. Ele e sua família viveram os melhores momentos de suas vidas naquelas terras, e, portanto, não havia lugar melhor no mundo para descansar pelo resto da eternidade. Iam com o Homem no carro sua mulher e seus dois filhos pequenos, todos mortos. Mortos pelo Monstro, que agora deveria pagar pelo que fizera. Por isso o Homem dirigia tão rapidamente: para cumprir sua ansiada vingança.

O Homem tinha consciência de que o Monstro só fizera o que fizera porque não podia controlar sua imensa fome, e que tentara com todas as forças ser um humano. Mas não era o bastante; o Monstro deveria morrer, para que isso jamais se repetisse. E ao Homem cabia o papel de aplicar-lhe a justa sentença.

O Homem enterrou sua família logo que chegou ao sítio. Em seguida, foi até sua árvore favorita, arrancou-lhe um galho pontiagudo e se deitou, olhando para o oriente. Com uma força sobrenatural enfiou o galho no peito e, paralisado, esperou o nascer do sol que, junto com um novo dia, traria a sua ansiada vingança, sua justa sentença.

segunda-feira, 29 de março de 2010

A Sereia

Quando acharam a Sereia cantarolando e penteando os cabelos na praia souberam que ela seria um sucesso gigantesco no mundo da música pop. Trataram logo de arranjar-lhe o maior Empresário que existia, que lhe deu uma dessas canções-chiclete, arrebatadoras de público e lucro. A fama e o dinheiro vieram a rodo. Em pouco tempo seu single chegava ao topo das paradas seguido de seu primeiro disco, com participação dos mais badalados rappers, cantores e produtores. Os shows da Sereia lotavam sempre, e assim começaram as grandes turnês, os lançamentos de grife, as festas e, claro, as drogas. Porém, bem como o sucesso, o vício e a decadência vieram cedo, e um dia, depois de vários escândalos, maquiagem borrada e declarações de eu sou a maior estrela do século, encontraram a Sereia morta em sua cobertura, devido a uma overdose de calmantes. O Empresário, o maior que existia, não se abalou: comprou um caixão bonito e tratou de enchê-lo de flores no funeral, com o intuito de esconder a cauda que havia virado uma bela peixada de final de semana na mansão dele e que, por sinal, foi muito bem freqüentada e bastante elogiada durante vários dias.

Regras

- Os textos devem ser de literatura fantástica, de qualquer “subgênero” (realismo fantástico, terror, ficção científica, maravilhoso, etc.);

- Os textos devem ser minicontos e não podem exceder o limite de 300 palavras;

- Tem mais não.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Cavalinhos Gregos é um blog de literatura. Mais especificamente, de contos, de minicontos, de minicontos fantásticos. Pequenos petiscos da irrealidade pra quem tem pressa em despregar-se do mundo.

O nome é emblemático. Remete tanto ao Pegasus quanto ao Cavalo de Tróia. Porque o Cavalinhos Gregos ao mesmo tempo que leva pra um passeio no fantástico finge que é sério pra entrar pela porta.

Cavalinhos Gregos é um exercício: o de escrever literatura fantástica em poucas linhas. Mas é um exercício lúdico, que proponho não só a mim, mas a qualquer um que nele quiser se aventurar. Desde que siga as regras do jogo.

O jogo começa, e espero que todos nós nos divirtamos. Estando de um lado ou de outro.