tag:blogger.com,1999:blog-34421674896463034512024-03-12T20:23:25.728-07:00Cavalinhos GregosNada mais que a verdadeLucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.comBlogger74125tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-70639753842235604032014-04-27T06:34:00.000-07:002014-04-27T06:36:39.792-07:00O anjo<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://en.wahooart.com/Art.nsf/O/8LT3ZU/$File/Paul-Klee-Angel-bell.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://en.wahooart.com/Art.nsf/O/8LT3ZU/$File/Paul-Klee-Angel-bell.JPG" height="400" width="306" /></a></div>
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span>
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">O anjo Elzevar está
desocupado, a única coisa que sabe fazer é levar mensagens mas não há mais
mensagens para levar, e assim o anjo dá voltas remexendo no lixo do grande
lixeiro municipal em busca de restos de comida e sobras de frutas: precisa
comer algo. De noite fez o teste de percorrer a margem do rio como prostituto
faz-tudo, e, de fato, sabe fazer muitas coisas e sua condição angélica o exime
de qualquer escrúpulo moral; mas na maioria das vezes o encontro termina mal,
por exemplo quando o cliente, antes ou depois, descobre que Elzevar não possui
sexo: ao que lhe parece, em algumas ocupações o sexo é particularmente
requerido, até mesmo indispensável. Para aplacar o cliente desiludido, Elzevar
o mostra um pouco como voa, primeiro à direita, depois à esquerda, depois passa
sobre sua cabeça e bagunça seus cabelos com uma rápida brisa; mas os clientes
da margem do rio exigem algo de mais concreto do que uma exibição de levitação;
um mordeu seu tornozelo em pleno voo, outro calvo e com peruca o chamou de
sodomita e um terceiro o denunciou à polícia, baseado num artigo do Código
Penal que proíbe exaltar a sedução e outros dois artigos do Código de Navegação
Aérea relativos ao voo urbano sem documentos. Depois disso Elzevar teve de se
mudar para outra curva do rio, perigosamente frequentada por famílias e
pescadores com varas, inclusive de noite.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">Esses inconvenientes,
consequências naturais de sua desocupação temporária, não podem preocupar
verdadeiramente um anjo. Para começar os anjos são imortais, e são poucos os
mortais que podem dizer o mesmo. E quanto à falta das mensagens, um dia ou outro
isso terá de acabar. Novos emissores estão se alistando, e os potenciais
receptores com certeza não são escassos. Já no passado aconteceu-lhe de ficar
sem trabalho por períodos maiores ou menores, sem fazer nada. Restos de comida
nunca lhe faltaram; é verdade que a prostituição angelical já não é o que
costumava ser, mas de qualquer maneira, até que esteja pronta a nova mensagem,
seguirá com o contato com os homens. Enquanto isso Elzevar sempre pode
encontrar um trabalho num circo, embora lamentavelmente muitas coisas tenham
mudado desde que existe a televisão. Se o Grande Silêncio durar muito, outros
caminhos interessantes e pouco percorridos serão abertos: por exemplo, o cinema
underground, a aplicação de antiparasitários, a manutenção de computadores, a
limpeza de elevadores e os desfiles masculinos de moda. </span><br />
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;"><br /></span>
<span style="font-family: Times New Roman, serif;"><span style="line-height: 18.399999618530273px;"><i>Juan R. Wilcock</i></span></span>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-73478446072353097622014-01-09T15:30:00.003-08:002014-01-09T15:33:19.189-08:00Espelhos<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://2.bp.blogspot.com/-jWYSFkdfECc/Ta50nDsUZ2I/AAAAAAAABDk/4-EeK3pQeII/s1600/serpente+espelho_FINAL_LOW.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://2.bp.blogspot.com/-jWYSFkdfECc/Ta50nDsUZ2I/AAAAAAAABDk/4-EeK3pQeII/s1600/serpente+espelho_FINAL_LOW.jpg" height="242" width="320" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<i>Ao amigo Igor </i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Há uma sentença de um heresiarca
de Uqbar que diz: “os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o
número de homens”. Esse é o único dogma de nossa Ordem.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Somos unidos apenas por um voto e
uma missão. O primeiro é a castidade; a segunda é a busca e destruição de
certos espelhos especiais. Porque apenas alguns espelhos são efetivamente capazes
de multiplicar o número dos homens: eles criam novos universos, por meio de um
reflexo deformado de nosso próprio mundo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
É possível que o acaso seja regido
por uma força maior, como uma loteria mística; em todo caso, nunca sabemos
quando seremos sorteados, nem qual será o prêmio. Aquele deveria ser apenas
mais um dos odiosos espelhos, idêntico às dezenas que já destruí. Mas ao olhar
para o outro lado, tudo mudaria.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
De início, pensei ver uma versão
mais nova de mim mesmo; mas logo percebi que se tratava na verdade de um filho que
eu não tinha. Ele era, portanto, o fruto dos dois maiores Pecados; e, no entanto,
após olhar seu rosto – uma mistura de mim mesmo com o infinito – soube logo que
faria tudo por ele, qualquer coisa para protegê-lo. Deixei o espelho intacto e
fui embora.</div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Há uma felicidade estranha em
pensar no meu filho – esteja ele onde estiver. Mas um dos meus pensamentos mais
prazerosos é imaginar se um dia ele também encontrará um espelho que o leve a
ver seu próprio filho; e se este também encontrará outro espelho que o permita
ver seu filho, e assim por diante, até o fim dos tempos – ou dos espelhos.
Penso e sorrio, sabendo que isso é o mais próximo que chegarei da imortalidade.<o:p></o:p></div>
Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-77588890815899189282013-09-05T13:24:00.003-07:002013-09-05T13:24:53.238-07:00Cérbero<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://danteworlds.laits.utexas.edu/gallery/0505cerberus.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="277" src="http://danteworlds.laits.utexas.edu/gallery/0505cerberus.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Seguro a maçaneta e
respiro bem fundo, preparando-me. Abro a porta: o cheiro é péssimo. Embora seja
de manha, tudo é escuridão. O interruptor não funciona; acho que cortaram a
energia. Noto que as janelas estão cobertas com folhas de papel coladas;
arranco algumas, deixando a luz fazer o ser papel. No chão, roupas sujas,
revistas velhas, garrafas vazias e marmitas com resto de comida estragada. Mas só
começo a suar frio ao ver as seringas espalhadas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Vou até o quarto. Há jornais
na janela aqui também, e as sombras são quase uma massa só. Uma delas, contudo,
se destaca; está jogada sobre algo que deve ser um colchão velho. Sei quem é:
reconheceria meu filho em qualquer lugar, mesmo aqui, neste inferno. Ajoelho-me
ao seu lado, tento ver se ele está respirando (eu não respiro). Ele volta a
cabeça para mim e me olha nos olhos, mas não me reconhece.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">É só quando tenho
certeza de que a ambulância está vindo que abraço meu filho e choro. Ele está
bem. Está doente, está quebrado, mas está vivo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">O som de latidos me
desperta; ainda estou segurando a maçaneta. Olho para o lado e vejo a origem do
barulho: um cão negro de três cabeças me encara com olhos de ferrugem. As visão
deveria me causar horror, mas em vez disso me enche de tristeza; pois nesse
momento me dou conta de que de fato estou diante da porta do Hades, do
submundo, do inferno, e, inevitavelmente, surge a lembrança daquele aviso do
poeta florentino: “deixai toda a esperança, ó vós que entrais”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Respiro fundo e giro a
maçaneta, sabendo o pior.<o:p></o:p></span></div>
Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-82361306002958386112013-07-01T11:00:00.002-07:002013-07-01T11:00:25.039-07:00Arte<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">A
arte é intenção ou percepção? Até hoje não consigo me decidir sobre a resposta.
Sempre que me faço essa pergunta, lembro-me daquela vez em que os alienígenas
chegaram à Terra. Como sempre fora esperado que fizessem, pediram-nos que
fossem levados ao nosso líder. Foi o que, humildemente, fizemos. Diante dele
explicaram, com sinceridade não humana, seus planos: observariam as condições
de nosso planeta e de nossa vida, e, dependendo do que vissem, decidiriam o que
fazer: tomariam nosso planeta ou iriam embora, deixando tudo como sempre foi.
Nosso líder, que era bastante sábio (ou, talvez, bastante ingênuo), escolheu
como primeiro destino uma de nossas exuberantes florestas tropicais. Bastou ouvir
o canto de nossos pássaros para que os alienígenas decidissem voltar para a
solidão infinita do espaço que, afinal, não era tão solitária assim. Nosso
líder, satisfeito consigo mesmo, atreveu-se a perguntar o porquê de uma decisão
tão rápida e certeira. Os alienígenas então disseram que um planeta no qual os
próprios animais eram capazes de fazer arte era demasiado evoluído para que
merecesse ser subjugado.<o:p></o:p></span></div>
Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-47231818180202369302013-04-28T14:15:00.001-07:002013-04-28T14:16:16.288-07:00Uirapuru<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://cirinodesign.com.br/passarinhando/images/stories/joomgallery/passeriformes_14/uirapuru2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="http://cirinodesign.com.br/passarinhando/images/stories/joomgallery/passeriformes_14/uirapuru2.jpg" width="400" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Um amigo (que soube disso quando
foi visitar sua pequena cidade natal) contou-me essa história há pouco tempo,
num tom entre verdade triste e mentira enigmática; talvez não haja nenhum outro
tom adequado para ela, afinal.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Matias, filho do prefeito da
cidade, sempre foi um menino doente. Ao terminar o ensino médio, foi obrigado a
trancar-se em casa, devido à fraqueza constante. Isolado, dedicou-se,
freneticamente, a ler e escrever, principalmente poesia. Algum tempo depois, reuniu
seus poemas e lançou um livro, chamado “Últimos cantos”. Seu pai bancou a
publicação e ajudou a distribuir, principalmente entre os antigos colegas de
Matias.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Pouco depois veio, terrível e
inexplicável, a onda de suicídios. Não muitos, mas o suficiente para abalar a
cidadezinha. Não demoraram a perceber que todos os suicidas tinham recebido e,
provavelmente lido, “Últimos cantos”. Surgiu o boato de que o livro seria
amaldiçoado, vingança invejosa do jovem que não podia viver.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Alguém sugeriu que fossem tirar
satisfação com Matias, obrigá-lo a confessar e retirar a maldição. Não o
fizeram pelo respeito que seu pai tinha na cidade. De toda forma, pouco depois
o próprio Matias morreria também, vítima da doença sem nome que o corroía desde
sempre.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
A história, como não poderia
deixar de ser, me inquietou bastante. Meu amigo me revelou que possuía um dos
exemplares de “Últimos cantos” que sobreviveram à tragédia. Não sem um
vergonhoso receio, li o livro. É fabuloso. Ao ponto de me deixar sem palavras para
descrevê-lo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Lembrei-me agora do que meu pai
me contava sobre o Uirapuru. Dizem que seu canto é tão belo que toda a floresta,
em reverência, se cala para ouvi-lo cantar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O livro de Matias deveria se
chamar “Uirapuru”; assim, não haveria mais nenhum suicídio misterioso, nenhuma
maldição. Pois poderia haver maior silêncio do que o da morte?<o:p></o:p></div>
Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-81046054858509516192012-11-21T11:02:00.001-08:002012-11-21T11:03:45.855-08:00Teólogo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2012/11/129_159-alt-jeronimo.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="640" src="http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2012/11/129_159-alt-jeronimo.jpg" width="476" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O tempo sempre foi uma questão
central em nossos grandes monoteísmos, polvilhando constantemente problemas na
mente de seus melhores pensadores. Desses justos, o maior dos tempos recentes
foi, indubitavelmente, Walter Benjamin; entretanto, o título de mais
interessante, deve, se há justiça no mundo, ser entregue ao padre argentino Xavier
Alonso Müller.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Em 1947, Müller publicou o
opúsculo intitulado “Apocalipse e Regresso”, no qual aponta a razão das
desgraças humanas: ao invés de estar se aproximando do Fim, o mundo na verdade
estaria se afastando dele. Explicando melhor: para Müller, o Apocalipse já
teria acontecido há milênios. Nós, homens atuais, somos os descendentes daqueles
que, impedidos de alcançar o Paraíso, foram condenados a passar o resto dos
tempos na danação, ou seja, na própria Terra. Assim, todos os acontecimentos
teológicos importantes dos quais temos notícia seriam meros reflexos distorcidos
dos verdadeiros eventos ocorridos antes do Apocalipse, encenações de uma
memória teimosamente saudosista.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Diante desse conhecimento
revelador, Müller descarta as atitudes mais óbvias: implorar misericórdia a
Deus ou orgulhosamente desprezá-lo. Para o padre, isso significaria apenas a
manutenção das atitudes arquetípicas: fé intranscendível e ateísmo improdutivo.
Sua solução, ao contrário, é muito mais refinada. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Müller propõe que a humanidade
concentre todos os seus esforços no avanço científico até alcançar o nível
tecnológico necessário para criar uma máquina do tempo. Dessa forma, seria possível
levar, mesmo que de pouco em pouco, toda uma agora consciente humanidade para a
época pré-apocalíptica, garantindo finalmente a todos a Salvação irrevogável.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
É difícil fazer um comentário
final sobre a obra de Müller. Há um, porém, que, em seu leve deboche, sempre me
pareceu bastante pertinente: “<i>Apocalipse
e Regresso</i> é uma obra exemplar, uma vez que, depois de Auschwitz, o mundo
só poderia contar com um Messias que salvasse a humanidade passando a perna no
próprio Deus”. <o:p></o:p></div>
Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-63821333310955356802012-09-29T13:16:00.001-07:002012-09-29T13:16:49.185-07:00Equação<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Joaquín Gómez era um grande
matemático. E como todo grande matemático, era também um filósofo. Consequentemente,
o que Gómez, no fim, buscava, era uma forma de transcendência, que, devido
talvez à influência do catolicismo (sempre ele), equivalia, para nosso
matemático, à felicidade da raça humana.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Assim, Gómez dedicou grande parte
de sua atividade intelectual a encontrar um caminho definitivo para a evolução
da humanidade. Este só poderia ser descrito, afinal, através da linguagem
matemática, a única que não permitiria dubiedade. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Cabe aqui, para não enganar o
leitor, um esclarecimento de ordem cronológica: Gómez era um contemporâneo
nosso, um “filho do século XXI”, se é que tal coisa existe.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
De modo que o pensamento de Gómez
é uma resposta consciente a esse caldeirão fumegante de incertezas no qual
cozinhamos. Essa consciência é notável no método do matemático.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
A partir de uma longa e minuciosa
pesquisa em inúmeros tratados de antropologia e filosofia, Gómez pôde chegar um
número de valores privilegiados e negados pela humanidade de maneira geral.
Transformados em elementos, tais valores puderam ser organizados na forma de
uma equação cuja raiz equivalia à felicidade eterna do ser humano.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Intitulado “O Teorema do
Progresso” (<i>El Teorema del Progreso</i>),
o tratado de Gómez que apresenta essa equação é uma obra-prima das ciências
humanas, matemáticas e da filosofia. Contudo, as editoras não pensaram assim. As
universitárias acharam a obra de Gómez uma “brincadeira positivista de mau-gosto”;
as comerciais nem se deram ao trabalho de responder. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Sem possibilidades de bancar ele
mesmo uma edição, e intentando atingir um público maior, sobrou a Gómez
publicar sua obra no formato de um blog. Atualmente, contudo, o <i>link</i> para a página está quebrado. Gómez
desapareceu, sua obra não pode ser mais lida, e a humanidade segue seu próprio
caminho, em direção a um abismo qualquer.<o:p></o:p></div>
Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-67297501781333125452012-09-19T18:04:00.004-07:002014-01-22T16:23:30.518-08:00Spam<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://1.bp.blogspot.com/_oC_Ol7N_7Yw/SfyOTPQC5_I/AAAAAAAAAOA/rPqvNbHrqwE/s400/odradek.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://1.bp.blogspot.com/_oC_Ol7N_7Yw/SfyOTPQC5_I/AAAAAAAAAOA/rPqvNbHrqwE/s400/odradek.jpg" height="400" width="383" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Já faz algum tempo que o recebi
por e-mail de alguma amizade ou ex-amizade; não me lembro bem. Sei que, como a
mensagem parecia confiável, deixei-o entrar, e só o percebi quando era tarde.
Quando me dei conta, tentei deletá-lo imediatamente; mas fui surpreendido com
seu apelo de que não o <i>matasse</i>.
Aquilo, como não poderia deixar de ser, me comoveu; e é por isso que ele até
hoje está aqui.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Seu humor reúne aqueles três atributos
que, combinados, tornam qualquer um insuportável: ironia, sarcasmo e cinismo. Mas, talvez
devido a sua dimensão (tem só alguns bytes), eu geralmente o acho divertido; ele
me lembra Woody Allen. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Sua brincadeira favorita é a
ameaça, e gosta de dizer que vai “escancarar minha privacidade”. Não sou uma
pessoa de segredos, mas não gosto que leiam minha literatura (acho-a muito
ruim). Quando ele se aproxima da pasta “Obras”, faço cara feia e ele recua
deixando escapar um sorrisinho que é como um <i>lag</i>, e que me faz estremecer.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Pensei em chamá-lo Odradek, mas
depois percebi que seria despropositado. Não o chamo nada e ele vem quando
quer.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Três ou quatro vezes sonhei que
ele escapava da tela e vinha até meu quarto onde eu, efetivamente, dormia.
Carregava, de alguma forma, uma faca. Ou talvez fosse um estilete. Não me fazia
mal, mas me espiava por horas a fio, respirando calmamente, como quem observa a
paisagem correndo pela janela de um trem.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Sei que é mau e que me odeia; no
fundo, também o detesto. Mas o suporto por saber que posso me livrar dele
quando quiser. Ele também tem consciência desse fato, mas, desde seu apelo
inicial, não tocamos no assunto. Pergunto-me se essa situação é <i>certa</i>. Mas sei que é a única forma para
que ambos possamos continuar existindo.<o:p></o:p></div>
Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-53553413578277556522012-08-22T14:09:00.000-07:002012-08-22T14:09:08.802-07:00H. P. Lovecraft<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://1.bp.blogspot.com/-9-48rH1Eam4/TuNofXleLvI/AAAAAAAADcM/U-8CUw-HG5o/s1600/lovecraft4.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="640" src="http://1.bp.blogspot.com/-9-48rH1Eam4/TuNofXleLvI/AAAAAAAADcM/U-8CUw-HG5o/s640/lovecraft4.jpg" width="481" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">Entender
verdadeiramente a obra de um autor requer uma chave muitas vezes encoberta pela
própria obra; é o que acontece com H. P. Lovecraft. Textos como <i><a href="http://www.hplovecraft.com/writings/texts/fiction/cc.asp">The Call of Cthulhu</a></i> e <i><a href="http://www.hplovecraft.com/writings/texts/essays/shil.asp">Supernatural Horror in Literature</a></i>
brilharam tanto em sua grandeza que ofuscaram os dois textos seminais da obra
do escritor: <i><a href="http://www.hplovecraft.com/writings/texts/fiction/pm.asp">Pickman’s Model</a></i> e <i><a href="http://www.hplovecraft.com/writings/texts/essays/nwwf.asp">Notes on Writing Weird Fiction</a></i>.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">O
que talvez tenha dificultado o reconhecimento da importância desses textos foi
a incapacidade, por parte dos leitores de Lovecraft, de considera-los em
conjunto, atentando assim para seus detalhes mais importantes. Vejamos: <i>Notes</i>..., um texto crítico, parece uma
espécie de manual de como escrever contos fantásticos. Principal argumento: o elemento vital de um
conto fantástico não é seu enredo, mas sim a atmosfera criada pelo narrador. Ou
seja, a qualidade do conto se deve mais a uma questão de técnica do que de
imaginação.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">Já
<i>Pickman’s Model</i> conta a história de
um homem profundamente abalado pelas sinistras telas de um exímio pintor:
Pickman. Suas telas, extremamente realistas, versam sobre monstros horríveis. Contudo,
não é a temática das obras que desestabiliza o narrador, mas sim a incrível
técnica de Pickman; o realismo de suas telas se deve ao fato de que se
utilizava de modelos reais – monstros reais. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">As
mãos do leitor atento começam a tremer, intuindo aonde quero chegar: a
excelência da obra do autor norte-americano é fruto dos modelos que ele – assim
como Pickman – tinha à disposição. </span><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;"><a href="http://www.hplovecraft.com/life/biograph.asp">O fato de que Lovecraft tivera diversas crises nervosas durante sua vida adquire extrema relevância</a></span><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">: como mostra
sua literatura, o conhecimento do horror conduz à loucura. “Mas isso é
biografismo”, argumenta o leitor inquieto. Melhor assim. Dormirá melhor ao
fingir ignorar que, na submersa cidade de <span style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;">R'lyeh, o grande Cthulhu espera, dormindo, o dia em que acordará para
destruir a humanidade.</span><o:p></o:p></span></div>
Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-49507145335693851332012-08-19T07:44:00.001-07:002012-08-19T07:44:06.272-07:00Um ignorado milagre<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">No
ano de 1953, na sertaneja vila de Taperinha, o padre Damião Queiroz da Fonseca
chamou a atenção por ter desenvolvido nas costas, de repente, um belo par de
asas brancas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">Sendo
padre, a associação com os anjos foi instantânea, e o milagre espalhado por
todo o sertão. A notícia chegou ao bispo de Petrolina, que, concomitantemente
maravilhado e desconfiado (ossos do ofício), decidiu verificar pessoalmente o
ocorrido. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">Lá,
o Bispo pôde contemplar o milagre aplumado do padre Damião, inquirindo-lhe a
atitude que lhe dera tal graça. Nada, sorriu tímido o padre, e o Bispo
reconheceu na humildade do pároco, bem como no atrofiamento de seus braços, a
prova definitiva de que se deparava com um santo<a href="file:///C:/Users/Lucas/Documents/Textos/Metamorfose.docx#_ftn1" name="_ftnref1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">[1]</span></span></span></a>.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">O
vaticano, contudo, não considerou a narrativa do Bispo uma prova tão definitiva
assim, receitando cuidado antes de assumir a santificação. Disse ao Bispo que
aguardasse, pois logo chegaria um representante para averiguar o caso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">Enquanto
isso, padre Damião ia mudando. Sumiram os braços, as pernas arquejaram, o
tronco inclinou-se, o peito estufou, os olhos abobalharam, e, finalmente,
nasceu-lhe penas pelo corpo e um bico na cara bem a tempo de receber o
visitante romano. Este, embora admirado com o pombo gigante, disse que não
podia canoniza-lo: “Santos são apenas homens, não bichos”<a href="file:///C:/Users/Lucas/Documents/Textos/Metamorfose.docx#_ftn2" name="_ftnref2" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">[2]</span></span></span></a>.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt;">O
Bispo ainda procurou atentar para o milagre do padre que se tornara
manifestação do Espírito Santo, mas o fato é que se tornou insuportável a
sujeira e os arrulhos monumentais produzidos pelo ex-padre. Assim, Taperinha
aproveitou bastante a tranquilidade depois de finalmente se livrar do seu
milagre.<o:p></o:p></span></div>
<div>
<br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<div id="ftn1">
<div class="MsoFootnoteText" style="text-align: justify;">
<a href="file:///C:/Users/Lucas/Documents/Textos/Metamorfose.docx#_ftnref1" name="_ftn1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman","serif";"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-size: 10pt; line-height: 115%;">[1]</span></span></span></span></a><span style="font-family: "Times New Roman","serif";"> Segundo o Bispo, diminuição dos
braços do padre era um sinal do toque da divindade uma vez que este “ficaria
livre de tocar com as mãos nas impurezas do mundo material” (VENÂNCIO, Gilmar. <i>História da Diocese de Petrolina</i>).<o:p></o:p></span></div>
</div>
<div id="ftn2">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/Lucas/Documents/Textos/Metamorfose.docx#_ftnref2" name="_ftn2" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">[2]</span></span></span></a>
Idem, Ibidem.<o:p></o:p></div>
</div>
</div>
Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-60677375820373247532012-07-04T18:46:00.001-07:002012-07-04T18:46:42.637-07:00Perpetuum Mobile<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://1.bp.blogspot.com/-MKl1ez75CUM/TYywTSN5mWI/AAAAAAAAEdI/sq_FtJqqG9k/s1600/perpetuum+mobile.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="257" src="http://1.bp.blogspot.com/-MKl1ez75CUM/TYywTSN5mWI/AAAAAAAAEdI/sq_FtJqqG9k/s400/perpetuum+mobile.jpg" width="400" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Apenas no século XXI foi criada a
primeira máquina automática de criar relatos. Seu funcionamento era simples: a
partir de uma base primária de narrativas orais recolhidas aleatoriamente (por
exemplo, conversas de mesa de bar, historias de pequenos acidentes, depoimentos
de testemunhas em estabelecimentos jurídicos, antigos casos amorosos, anamneses
médicas, etc.), a máquina era capaz de recombinar trechos dessas narrativas e
criar novos relatos de maneira completamente independente.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Contudo, para o próprio espanto
de seu criador (um engenheiro alemão chamado Bertolt Gumbrecht), máquina
automática de criar relatos passou a incorporar suas próprias criações como
componentes de sua base primordial. Alimentada pela própria voz que produzia, a
máquina passou a criar histórias independentes da realidade que a circundava,
passando ao mesmo tempo a negá-la e a reforçá-la muitas vezes na mesma
narrativa contada. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Assim, como o passar do tempo, as
narrativas da máquina automática de criar relatos desenvolveram-se
paralelamente à história humana, embora uma ocasionalmente antecipasse ou
recontasse a outra. Exemplo: em 2262, a máquina criou o relato de um certo engenheiro
alemão chamado Bertolt Brecht, inventor de uma máquina automática de criar
relatos. A coincidência com a história, contudo, chamou menos atenção do que o “erro”
no nome do personagem. Se a máquina produzia narrativas aleatórias
ininterruptas, não seria improvável que um dia ela acabaria contando seu
próprio nascimento. O “erro”, por outro lado, não deixava de sugerir certa
ironia impossível para uma máquina – a não ser, sugeriam os mais misteriosos,
que algum tipo de consciência houvesse brotado daquele emaranhado de relatos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Num futuro mais distante, por qualquer
uma das inúmeras razões possíveis, a humanidade acabará consigo mesma. Sobrará,
contudo, protegida debaixo dos escombros da civilização, a máquina automática
de contar relatos, ainda a criar histórias, a promessa passada de que um dia
andamos por sobre a superfície da terra.<o:p></o:p></div>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-34463694431214090582012-06-07T09:00:00.000-07:002012-06-07T09:00:34.110-07:00Continuidade dos parques<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à chácara; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns aluguéis, voltou ao livro com a tranqüilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir</div>
<div style="text-align: justify;">
descolando-se linha a linha daquilo que o rodeava e de sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do monte.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Antes entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara machucada pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela fazia estalar o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e por baixo gritava a liberdade refugiada. Um diálogo desejante corria pelas páginas como riacho de serpentes e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como que querendo retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasso sem dó nem piedade interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Começava a anoitecer.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Já sem se olharem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Da direção oposta ele virou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu, por sua vez, apoiando -se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam -lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma galeria, uma escada carpetada. No</div>
<div style="text-align: justify;">
alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Participação especial do meu amigo Julio Cortázar. (A tradução não é minha)</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-36061183064667883012012-05-31T07:00:00.001-07:002012-05-31T07:00:15.183-07:00Formador<br />
<div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
O
primeiro grande desejo de Adam Silverman foi ser enciclopedista.
Maravilhado, segundo ele mesmo, desde pequeno com a vasta biblioteca
paterna, sonhava em reunir tudo o que descobria naquele universo de
palavras num só local, compartilhando com os outros sua própria
euforia da revelação. As enciclopédias, contudo, já existiam.</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
Anos
mais tarde Silverman doutora-se em filosofia e passa a dar aulas em
uma universidade. Mais preocupado com a possibilidade de levar seus
alunos a aprenderem a pensar do que com a “produção intelectual”
propriamente dita, Silverman ainda segue os propósitos da juventude.
Entretanto, a pressão por parte de seus colegas de departamento e o
desinteresse generalizado dos alunos o levam a abandonar a carreira.
Some por algum tempo.</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
Volta
com um novo projeto: a montagem de grandes obras em formas de
musicais que são exibidos na Broadway. Sua estreia, com uma versão
das <i>Confissões</i> de Agostinho, é um grande sucesso de público
e crítica. A partir daí, faz várias adaptações aclamadas, a mais
famosa provavelmente a de <i>Discurso do método</i>, que inclusive
contou com Jude Law no papel do <i>Cogito</i>. Acredita finalmente
ter alcançado seu objetivo.</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
Seu
sucesso é destruído após uma ousada montagem do Alcorão, que,
auxiliado pelo clima político, desperta ódio em diversos setores.
Sofre um atentado que quase tira sua vida (cuja autoria foi assumida
por um grupo xiita) e pouco depois é processado por anti-semitismo,
apesar da sua ascendência hebraica.
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0.35cm;">
Nunca
mais realiza montagens. No entanto, segundo revelaram alguns amigos
mais próximos, está trabalhando numa versão pornográfica de <i>Ser
e Tempo</i>, que deverá estrear ano que vem.</div>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-81898210681204401572012-05-21T09:18:00.000-07:002012-05-21T09:31:04.079-07:00Um mito<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/Noz.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/Noz.jpg" width="355" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Esta história foi
recolhida pelo antropólogo francês Jean-Henri Pouillon, quando estudava a tribo
boliviana Pachucua.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">“Hoje podemos contar,
mas nem sempre foi assim. Há muito tempo atrás Tarucacha fez os homens como
eles somos; e os ensinou a caçar, a pescar, a tecer e a viver juntos, e tudo o
precisamos saber até hoje. Então Tarucacha voltou ao céu, porque estava muito
cansado de trabalhar tanto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Mas, quando depois de
descansado, Tarucacha voltou a terra para visitar seus filhos, viu que tudo
tinha mudado. Eles tinham tido muitos filhos, e seus filhos também tiveram
filhos, isso muitas vezes. Mas nenhum dos novos filhos sabia fazer o que
Tarucacha havia ensinado aos primeiros, vivendo como os bichos: andando de
quatro patas e devorando uns aos outros.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Foi então que Tarucacha
percebeu seu erro: tinha esquecido, talvez pelo cansaço, de colocar uma língua
na boca dos homens, que sem poder falar, não conseguiam ensinar seus próprios
filhos as coisas que tinham aprendido com Tarucacha. Este, depois de consertar
seu erro, teve de reunir todos os seus filhos e ensinar tudo outra vez.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">É por isso que, para
que os homens jamais voltem a agir como os bichos, falar e andar são as
primeiras coisas que aprendem </span><span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 16px; line-height: 18px;">as crianças</span><span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">. Mas o mais importante: é justamente porque antes não tínhamos língua que hoje podemos saber que isso um dia aconteceu”.</span></div>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-59911646194299016302012-05-04T15:11:00.001-07:002012-05-04T15:12:36.814-07:00As últimas palavras<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Você provavelmente chegou a este
texto através da indicação de algum amigo ou colega seu. Está só no cômodo, de
frente para a tela do computador e, mais por falta de alternativa do que por uma
opção própria, cultivando o desânimo. Nada mais trivial. Portanto, não se
culpe: quem poderia adivinhar que logo hoje seria o dia da sua morte?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O tédio aumenta. Mesmo com boa
vontade é impossível não pensar no clichê das palavras lidas. De fato, isto se
parece com mais um daquelas obras que avisam sobre a morte do espectador, como
um conto de mistério ou um filme de terror sem criatividade. Isso tudo é ficção
barata.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
No entanto, você não consegue
esconder um leve nervosismo; e se isso não for ficção? Não chega a desviar a
vista da tela, mas com a visão periférica procura por outras pessoas. A solidão
do cômodo parece muito mais forte agora. E será que você não escuta algum
barulho estranho?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Sim, um barulho... como um
sussurro de algo rasgando o ar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Você não tem tempo de se virar: a
dor – aguda, cruel – o impede de realizar qualquer movimento. O gosto de sangue
sobe à boca e você sabe que é real; o que jamais saberá é quem (ou o que) tirou
sua vida. No entanto, antes de tudo ficar totalmente escuro, você não consegue
deixar de escapar um último sorriso. O sorriso irônico de quem percebe de que
as últimas palavras que vêm à sua mente não são suas, mas sim de uma simples
ficção barata.<o:p></o:p></div>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-60942269053335143452012-02-29T14:44:00.000-08:002012-02-29T14:44:19.872-08:00Oráculo<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://jrodrigorodriguez.files.wordpress.com/2010/03/oraculo.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="315" src="http://jrodrigorodriguez.files.wordpress.com/2010/03/oraculo.jpg" width="320" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Por duas vezes Giorgos Dimitriou
pôde ver sua futura morte. A primeira delas ocorreu após ser recém-admitido em
uma orgulhosa escola teosófica de tradição grega devido ao seu incontestável
talento para as artes oraculares. Tal visão teria sido motivada por uma
arrogância e imaturidade comuns ao temperamento juvenil, e causou um impacto
igualmente condizente com tal gênio e com a natureza da informação. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Por muitos anos Dimitriou
esquivou-se da lembrança da visão, até que certa melancolia companheira da
meia-idade o levou a novamente encarar sua morte. Mas, surpreendentemente, a
forma do seu fim havia assumido uma aparência completamente diversa da que
possuíra anos atrás.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
A segunda visão produziu-lhe um
impacto ainda maior. Sabia que o caminho de cada homem havia sido escrito pelos
deuses no Livro do Destino desde os tempos imemoriais. Como poderia, então, sua
morte ter mudado? Aquela dúvida abalou as crenças de Dimitriou, obrigando-o a
um enorme esforço reflexivo imerso na completa reclusão. Até que encontrou a
resposta.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Seu Destino não havia mudado, mas
sim o próprio Demetriou. As palavras no Livro eram as mesmas; sua leitura
delas, outra, uma vez que ele mesmo era outra pessoa: mais velho, mais maduro,
mais humilde.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
À reflexão seguiu-se a especulação:
após alguns anos, Dimitriou sugeriu aos seus colegas da escola que o Livro do
Destino poderia ser, afinal, um texto de ficção: seus propósitos seriam
inúmeros, menos se referir diretamente à vida dos homens. Escandalizados, seus
pares gritaram que se assim o fosse, os deuses seriam mentirosos em vez de
deuses. Dimitriou respondeu que tratava do Livro e não dos deuses, mas não foi
ouvido: expulsaram-no por heresia.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Depois disso, Dimitriou se mudou
para a praia onde permaneceu até morrer, alguns anos mais tarde. A causa foi
câncer de pulmão, pois fumava demais e sempre tivera pavor de médicos. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-28283170447870852832012-02-04T07:30:00.001-08:002012-02-05T14:38:35.967-08:00Deus Ex Machina<div align="justify">
</div>
<div align="justify">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://2.bp.blogspot.com/-yHlhjyUTw4Q/Ty8E2TxAV-I/AAAAAAAAANo/s9A0a8Maips/s1600/deuxex.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="http://2.bp.blogspot.com/-yHlhjyUTw4Q/Ty8E2TxAV-I/AAAAAAAAANo/s9A0a8Maips/s400/deuxex.jpg" width="400" /></a></div>
<br /></div>
<div align="justify">
Jason Morgue, 23, foi encontrado morto na sala de estar de seu apartamento, deitado de barriga para baixo, com a metade inferior do corpo completamente esmagada. À sua frente se encontrava a tv e um console de videogame ligados; a tela exibia a mensagem de <i>game over</i>.</div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
Outros elementos estranhos estavam ligados à surpreendente morte: todas as portas e janelas se encontravam trancadas por dentro, sem sinais de arrombamento; nenhum pertence do cadáver havia sido levado; Jason, estudante universitário “gente boa”, não possuía nenhum inimigo que poderia desejar sua morte.</div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
O mistério ganhou grande repercussão por ser insolucionável. Alguém sugeriu a velha saída do crime-com-portas-trancadas-por-dentro: o assassino teria se escondido dentro do apartamento e esperado o lugar se encher de curiosos para escapar misturado à multidão. Contudo, como ele poderia esmagar a parte inferior de Jason e sair com tal arma do crime sem ser notado? Assim, o assassinato de Jason ficou irresolvido por uma centena de anos, até ser solucionado pelo próprio assassino.</div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
Este se chamava Peter Hoffmann, o inventor da máquina do tempo, e escritor amador de literatura policial, e que, por recolher material para suas obras de recortes jornalísticos, havia se deparado com o caso de Jason. Aconteceu que Hoffmann, no primeiro teste de sua invenção, deslocou-se no tempo mas não no espaço, e seu laboratório estava localizado onde anteriormente era o apartamento de Jason. De modo que a máquina do tempo, um trambolho enorme, “apareceu” bem em cima do jovem que jogava videogame deitado no chão, esmagando metade do seu corpo.</div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
Hoffmann, assustado por ter sido ele o autor do famoso crime insolucionável, teve um ataque de histeria, imediatamente retornando para sua época somente para destruir sua criação e abandonar a literatura policial.</div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
O que foi realmente uma lástima, pois até que ele escrevia bem.</div>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-87758915119403813392012-01-29T08:19:00.001-08:002012-01-29T09:16:05.179-08:00Oferenda<img height="275" src="http://www.almendron.com/arte/pintura/goya/estampas/disparates/imagenes/dis_04.jpg" style="display: block; float: none; margin-left: auto; margin-right: auto;" width="400" /><br />
<div align="justify">
<br />
Aquele era um clube noturno novo, cujos segredos eu ainda descobria. Naquela ocasião, a bebida exagerada havia me enchido de ousadia. Culpo essa situação pela minha atitude ao ver o sujeito falando com a garota que parecia estar na fronteira entre o pânico e a entrega.</div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
Abordei o homem com um empurrão, perguntando se não via que incomodava a moça. Surpreendentemente, ele não reagiu; apenas levantou as mãos, desaparecendo com um sorriso cínico no intervalo entre a sombra e a luz. A moça, que deveria estar realmente assustada, havia fugido. </div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
Naquela noite tive um pesadelo. Uma voz horrenda <i>exigia,</i> num sussurro, sua oferenda. Vi uma garota, cujo rosto era uma sombra, ser guiada por formas humanas deformadas até um altar, onde foi torturada rapidamente até a morte. Acordei com um calafrio que por horas não me deixou dormir.</div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
A partir daí, todos os dias o pesadelo retornava, ficando cada vez pior. A voz passou de um sussurro para gritos. As formas sempre traziam uma moça diferente, e as torturas ficavam cada vez mais brutais e duravam horas. A sombra no rosto permanecia, mas no fim, quando ela finalmente morria, seu rosto se virava para mim revelando aquele sorriso cínico que já havia visto antes.</div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
Tudo foi inútil para parar os pesadelos. Até que um dia, quando me vi à beira da ruína, descobri o que tinha de fazer.</div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
Levei uma amiga ao clube; achá-lo entre as pessoas foi abominavelmente fácil. Apresentei-o a ela como um velho colega da faculdade; ele sorria como se tivéssemos combinado tudo antes. Disse que ia comprar uma bebida e fugi; os sonhos acabaram.</div>
<div align="justify">
<br /></div>
<div align="justify">
Desde então, não tive mais notícias dessa amiga. Evito conhecidos em comum, com medo do que possam me dizer. Sei o que fiz com ela, para o que a entreguei. Mas; mas...</div>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-56660151334915838292012-01-21T14:34:00.001-08:002012-01-21T17:25:59.131-08:00Curupira<img height="457" src="http://thetruedeceiver.up.seesaa.net/image/Paul20Klee2C20Angelus20Novus201920.jpg" style="display: block; float: none; margin-left: auto; margin-right: auto;" width="358" /><br />
<div align="justify">
<br />
Curupira atualmente trabalharia pro IBAMA, brincou certa vez um amigo meu que costumava bancar o folclorista espirituoso. Mal sabia ele que tal afirmação escarnecedora não poderia estar mais longe da natureza do Curupira. Ele não é um protetor das florestas. É verdade que seu rastro confunde os caçadores, mas isso não é proposital, apenas consequência das bebedeiras constantes que toma devido a seu temperamento.<br />
<br /></div>
<div align="justify">
Conheci-a há um tempo, a criatura tristonha. Não tinha os cabelos de fogo mais do que qualquer ruivo normal, mas os pés, de fato, eram voltados para trás. Era essa peculiaridade, aliás, o principal motivo da sua desgraça, pois tudo aquilo que o Curupira almejava era afastado de si justamente no momento em que tentava se aproximar do objeto desejado. <br />
<br /></div>
<div align="justify">
Quando Curupira me contou isso, tentei argumentar que ao menos ele sempre se afastaria daquilo que queria evitar, mas esse pensamento não melhorou seu humor. Em resposta baixou os olhos e sorriu tristemente:<br />
<br /></div>
<div align="justify">
- Pode ser, mas também não sei o destino da minha fuga, que no fim das contas pode ser algo ainda pior.<br />
<br /></div>
<div align="justify">
Se a Mãe Natureza deu alguma função ao Curupira, ele não faz ideia, e zomba que deve ser de “bobo da corte”: afinal, como pode uma criatura mitológica ser tal sinônimo da incerteza, se não por brincadeira? <br />
<br /></div>
<div align="justify">
Depois de pensar um tempo sobre a pergunta, concluí que a Mãe talvez soubesse o que estava fazendo. Pois me parece que Curupira é a única criatura antiga que ainda tem lugar no nosso tempo, tão duvidoso quanto pés virados para trás. <br />
<br /></div>
<div align="justify">
Minha conclusão trouxe certo ânimo e resolvi dar de presente ao Curupira uma reprodução do <i>Angelus Novus</i>, de Klee. Vi em seus olhos que havia me compreendido, mas que aquilo não mudava muita coisa. Baixou-os e agradeceu com seu sorriso triste.</div>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-35640831702817463472012-01-14T13:11:00.001-08:002012-01-14T13:14:02.335-08:00Sertão do aço<div style="text-align: center;">
<img height="276" src="http://3.bp.blogspot.com/_dus4IYol-u4/TFEDvMA73rI/AAAAAAAAAvo/hd_LaU3dNqM/s400/sert%C3%A3o.bmp" width="394" /></div>
<div align="justify">
<br />
<div style="text-align: justify;">
O menino viu o grupo dobrando a estrada, longe. Correu para a porta da casa de barro, olhou para o pai lá dentro e disse:</div>
</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
- Cangaço.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
O homem levantou abruptamente e fez sinal para a mulher permanecer sentada. Seu olhar dizia que resolveria tudo. Em seguida caminhou até a estrada, e esperou o grupo de cangaceiros de aço chegar.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
Eram poucos, mas isso não aliviou a tensão do homem; esse tipo de gente era sempre perigoso, estando em bando ou sozinhos. Vários deles tinham implantes mecânicos, principalmente braços e pernas. O homem que à frente acenou com a mão e o grupo parou; tinha esferas vermelhas no lugar dos olhos e um implante substituindo o maxilar, dando-lhe o aspecto de uma caveira de metal.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
- Precisamos de um lugar pra passar a noite, disse. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
- Temos um lugar, mas não mais do que isso, respondeu o homem. Falta tudo o mais pra nós.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
- Não precisamos mais que isso, além do silêncio. Temos macacos no rastro.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
O homem acenou, indicando que o seguissem. Colocou-os num estábulo velho, há muito tempo vazio. Depois foi para casa, trancando sua família lá dentro, ordenando silêncio e rezando para que ele permanecesse em todo canto.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
O grupo partiu ao amanhecer. O homem agradeceu, não a eles, mas à sorte deles terem deixado apenas as mesmas desgraças que encontraram. A mulher, contudo, não parecia tão satisfeita, e olhando o grupo com desprezo comentou:</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
- Olhe pra’quilo. Aquelas coisas no corpo, na cara, aberrações. Aquilo ali já não é mais <i>gente</i>. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
O homem olhou para o grupo, para a esposa e para a casa, tristemente. Talvez o bando não fosse mais gente mesmo; mas isso ao menos significava que alguma vez o fora. E eles, vivendo naquela miséria, esquecidos por Deus, o que <i>eles</i> eram?</div>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-40188438651285433702012-01-06T10:55:00.001-08:002012-01-06T12:24:14.396-08:00Resposta<div align="justify">
<span style="font-size: medium;"></span></div>
<a href="http://lh5.ggpht.com/-z137QZ6peR8/TwdXOFi1auI/AAAAAAAAANg/OTogdUtM1As/s1600-h/resposta%25255B6%25255D.png"><img alt="resposta" border="0" height="562" src="http://lh6.ggpht.com/-zw9GMMMgaAA/TwdXQjAQwdI/AAAAAAAAANk/nnZVc6IFpYg/resposta_thumb%25255B4%25255D.png?imgmax=800" style="background-image: none; border-bottom: 0px; border-left: 0px; border-right: 0px; border-top: 0px; display: inline; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px;" title="resposta" width="504" /></a>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-21359373292559268322011-12-28T07:51:00.001-08:002012-01-02T16:48:09.764-08:00O outro lado<div align="justify"><a href="http://lh3.ggpht.com/-CSKxlxGl284/Tvs7CUXCiBI/AAAAAAAAAMo/zon0ff-ho1o/s1600-h/lovecraft%25255B7%25255D.jpg"><img style="background-image: none; border-right-width: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; display: inline; border-top-width: 0px; border-bottom-width: 0px; border-left-width: 0px; padding-top: 0px" title="lovecraft" border="0" alt="lovecraft" src="http://lh6.ggpht.com/-tjccjbtN1VA/Tvs7DZW5xmI/AAAAAAAAAMw/lrQ0RRYJyUQ/lovecraft_thumb%25255B2%25255D.jpg?imgmax=800" width="398" height="314" /></a></div> <div align="justify"> <br /></div> <div align="justify">Tudo começou numa noite, quando, ao cruzar uma rua deserta, fui surpreendido por mãos revirando meus bolsos e uma lâmina perfurando minhas costas. Lembro que, após um rápido espasmo, caí no chão desmaiado.</div> <div align="justify"> </div> <div align="justify">Imediatamente abri os olhos e me encontrava neste mundo. À primeira vista, como o incidente ocorrera de noite, pensei estar na mesma rua. Quando me levantei, notei que não havia ferida alguma; olhei ao redor e percebi que aquele era outro lugar.</div> <div align="justify"> </div> <div align="justify">Continuava numa rua cercada de prédios, mas estes estavam enegrecidos como se fossem sobreviventes de um incêndio; não havia luz em nenhuma janela. No céu, uma imensa lua cor de sangue era a única iluminação do mundo.</div> <div align="justify"> </div> <div align="justify">Poucos instantes foram necessários para perceber que havia mergulhado no horror. Vi hordas de seres que pareciam pessoas nuas e extremamente brancos, mas que no lugar do rosto tinham apenas uma boca enorme repleta de dentes pontiagudos. Vi vermes do tamanho de cachorros sacodindo-se freneticamente como se um fogo invisível os consumisse. Vi, ao longe, algo gigantesco, maior que qualquer prédio daqui, que se move lentamente durante a noite (aqui a noite é eterna), às vezes olhando por horas a fio para a lua de sangue, às vezes abaixando-se para apanhar com suas garras colossais seres indescritíveis que devora lentamente.</div> <div align="justify"> </div> <div align="justify">Não importa o que eu faça, não consigo acordar. Acredito que esteja em coma devido ao ferimento, por isso não consigo sair deste pesadelo. É possível também que eu tenha morrido e aqui seja o inferno.</div> <div align="justify"> </div> <div align="justify">Assim, passo a maior parte do meu tempo aqui escondido na escuridão de algum prédio, temendo o que possa acontecer. Temo infinitas coisas. Mas o que mais me apavora é a possibilidade de que aquela noite em que fui esfaqueado tenha sido o mais distante possível que consegui fugir deste lugar.</div> Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-5304961205735297612011-12-28T07:31:00.001-08:002011-12-28T14:42:57.556-08:00Saci<p align="justify"><img src="http://boitempoeditorial.files.wordpress.com/2011/11/saci.jpg" width="397" height="284" /></p> <p align="justify">Esses dias me lembrei da vez em que conheci um saci.</p> <p align="justify">Isso foi na adolescência, quando costumava viajar pelo interior com meus pais. Em um cidadezinha, cujo nome não recordo, notei que um ponto de referência constante era a “casa do saci”. Curioso, perguntei o porquê do apelido; os matutos riram e disseram não era apelido, que ali tinha saci mesmo.</p> <p align="justify">Numa manhã de ócio saí para ver o tal Saci. No local indicado encontrei uma casa tipicamente interiorana, emendada nas outras, com uma varandinha na frente, onde estava sentado numa cadeira de balanço um senhor negro um tanto velho, fumando um cachimbo malcheiroso. Trazia um boné vermelho na cabeça, e, pela falta de volume do lado esquerdo da calça, percebia-se uma perna faltando. Parecia de muito mau humor.</p> <p align="justify">Consegui conversar um tempo com ele. Disse que era mesmo um saci, desses moleques e traquinas, mas que depois de perder sua função no mundo teve de vir pra cidade. Perguntei, inocente, se era porque ninguém acreditava mais no Saci. O velho achou graça na pergunta, respondendo ironicamente:</p> <p align="justify">- Pouco importa se vocês acreditam ou não na gente; a gente tá aqui somente pra fazer desordem e bagunça. Acontece que vocês arrumaram formas muito mais eficientes pra tornar o mundo mais caótico; e, o pior, de forma bem ordeira. Não vi mais razão continuar dando nó em rabo de cavalo e arrumei um emprego, como todo mundo. Hoje sou aposentado pelo INSS.</p> <p align="justify">Foi uma visita realmente frustrante, mas ainda assim pedi para tirar uma foto minha com o saci. Em pouco tempo esqueci completamente aquele episódio; tanto que, quando olhava os antigos álbuns da família, demorei bastante tempo para me lembrar por que eu tinha uma foto com aquele idoso militante do MST.</p>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-19572160579828151032011-12-23T08:59:00.001-08:002011-12-23T09:53:54.301-08:00Golem<p align="justify">Não existe conhecimento no mundo que possa salvar o homem da perdição.</p> <p align="justify">Chamo-me David Bolzman, e há algum tempo descobri que tenho um tumor inoperável no cérebro; meu tempo de vida, disseram-me, é infelizmente curto.</p> <p align="justify">A maioria das pessoas cairia imediatamente num estado de luto por si mesmo; eu, contudo, sempre fui muito pragmático, e decidi logo que não poderia perder tempo lamentando minha partida se eu ainda quisesse permanecer neste mundo.</p> <p align="justify">Dediquei-me, portanto, exclusivamente ao meu estudo da Cabala, que antes me tomava apenas o tempo do divertimento. Acreditava que poderia descobrir ali a chave para minha salvação, e de fato encontrei: a receita exata para a criação de um Golem.</p> <p align="justify">A ideia era simples: ao invés de animar um corpo literalmente de barro, eu usaria a fórmula para me transformar em um Golem, afinal, todos nós somos, em princípio, corpos de barro. Dessa forma, eu poderia manter minha matéria animada para sempre, enquanto minha alma manteria o controle de tudo.</p> <p align="justify">Assim, preparei ritualmente uma placa de argila com a palavra <i>Emet </i>(que quer dizer “verdade” na língua sagrada) gravada, colocando-a debaixo da minha língua; e essa foi minha perdição.</p> <p align="justify">Pois ao invés de imortalizar meu corpo, o ritual levou-me à total consciência de tudo; tornei-me, como Deus, conhecedor de todos os mistérios da Criação. Contudo, saber de tudo é também ser tudo; e, vi-me então transportado para uma terrível viagem por diversos estados de consciência, o que, à distância, só pôde ser encarado por meus familiares como loucura.</p> <p align="justify">Mas o divino Caos (e entendo agora dos <a href="http://cavalinhosgregos.blogspot.com/2011/05/ouroboros.html">ouroboristas</a>), por sorte, me trouxe novamente ao meu estado original, embora eu saiba que isso dure pouco tempo. Tenho, portanto, apenas alguns instantes para escrever minha história, antes de me unir ao Criador no pesadelo que é a onisciência.</p>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3442167489646303451.post-21357118405841401122011-12-04T11:05:00.001-08:002011-12-04T11:12:02.873-08:00Visão do Paraíso<p align="justify">A obra do meu falecido amigo Ricardo Narciso tem sido muito comentada atualmente, gerando uma infinidade de opiniões sobre seus textos. Alguns o consideram violentamente progressista, ou corajosamente reacionário, ou um apolítico irônico. É igualmente metafísico e materialista; experimental e conservador; um elevado esteta e um chulo inconsequente.</p> <p align="justify">“Contraditório” é a <i>leitmotiv</i> dos detratores de Narciso. Para eles, tal defeito se deve à incapacidade do artista em lidar com a imensa variedade de sua própria obra. Dessa forma, teríamos várias aberrações, como o “clássico” ensaio sobre a relação da diáspora palestina e as comédias nonsense.</p> <p align="justify">Há, contudo, aqueles que preferem “contradição”: o que Narciso realmente faz é um ataque constante à própria obra para tratar da impossibilidade atual de se chegar a uma Verdade. A contradição seria, portanto, não um defeito, mas sim o elemento formal que rege toda a obra do autor.</p> <p align="justify">Tenho minha própria interpretação, biográfica, por assim dizer, baseada numa história interessante que Narciso me contou. Disse que caminhava aleatoriamente quando, sem querer, olhou para uma pessoa que vinha em sua direção e percebeu que era um anjo; entendeu isso quando, ao cruzar olhares com esse ser, pôde ter, por um milésimo de segundo, uma visão do Paraíso refletida em seus olhos.</p> <p align="justify">Creio que esta seja a verdadeira chave para a sua obra. Embora ele nada tenha me dito, acredito que tal visão modificou meu amigo para sempre. Tendo consciência de que seria impossível representar o que vira, Narciso dedicou sua obra pós-encontro a ser um monumento da ruína. Atacando a tudo e, sobretudo, a si mesma, a obra de Narciso procura ser um espelho ao inverso da perfeição e ordem do Paraíso divino; e assim, o que meu amigo tenta dizer é que algo sublime também (ou só) pode ser humanamente construído por meio da destruição.</p>Lucashttp://www.blogger.com/profile/00485085066318740802noreply@blogger.com0