quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O outro lado

lovecraft

Tudo começou numa noite, quando, ao cruzar uma rua deserta, fui surpreendido por mãos revirando meus bolsos e uma lâmina perfurando minhas costas. Lembro que, após um rápido espasmo, caí no chão desmaiado.
 
Imediatamente abri os olhos e me encontrava neste mundo. À primeira vista, como o incidente ocorrera de noite, pensei estar na mesma rua. Quando me levantei, notei que não havia ferida alguma; olhei ao redor e percebi que aquele era outro lugar.
 
Continuava numa rua cercada de prédios, mas estes estavam enegrecidos como se fossem sobreviventes de um incêndio; não havia luz em nenhuma janela. No céu, uma imensa lua cor de sangue era a única iluminação do mundo.
 
Poucos instantes foram necessários para perceber que havia mergulhado no horror. Vi hordas de seres que pareciam pessoas nuas e extremamente brancos, mas que no lugar do rosto tinham apenas uma boca enorme repleta de dentes pontiagudos. Vi vermes do tamanho de cachorros sacodindo-se freneticamente como se um fogo invisível os consumisse. Vi, ao longe, algo gigantesco, maior que qualquer prédio daqui, que se move lentamente durante a noite (aqui a noite é eterna), às vezes olhando por horas a fio para a lua de sangue, às vezes abaixando-se para apanhar com suas garras colossais seres indescritíveis que devora lentamente.
 
Não importa o que eu faça, não consigo acordar. Acredito que esteja em coma devido ao ferimento, por isso não consigo sair deste pesadelo. É possível também que eu tenha morrido e aqui seja o inferno.
 
Assim, passo a maior parte do meu tempo aqui escondido na escuridão de algum prédio, temendo o que possa acontecer. Temo infinitas coisas. Mas o que mais me apavora é a possibilidade de que aquela noite em que fui esfaqueado tenha sido o mais distante possível que consegui fugir deste lugar.

Saci

Esses dias me lembrei da vez em que conheci um saci.

Isso foi na adolescência, quando costumava viajar pelo interior com meus pais. Em um cidadezinha, cujo nome não recordo, notei que um ponto de referência constante era a “casa do saci”. Curioso, perguntei o porquê do apelido; os matutos riram e disseram não era apelido, que ali tinha saci mesmo.

Numa manhã de ócio saí para ver o tal Saci. No local indicado encontrei uma casa tipicamente interiorana, emendada nas outras, com uma varandinha na frente, onde estava sentado numa cadeira de balanço um senhor negro um tanto velho, fumando um cachimbo malcheiroso. Trazia um boné vermelho na cabeça, e, pela falta de volume do lado esquerdo da calça, percebia-se uma perna faltando. Parecia de muito mau humor.

Consegui conversar um tempo com ele. Disse que era mesmo um saci, desses moleques e traquinas, mas que depois de perder sua função no mundo teve de vir pra cidade. Perguntei, inocente, se era porque ninguém acreditava mais no Saci. O velho achou graça na pergunta, respondendo ironicamente:

- Pouco importa se vocês acreditam ou não na gente; a gente tá aqui somente pra fazer desordem e bagunça. Acontece que vocês arrumaram formas muito mais eficientes pra tornar o mundo mais caótico; e, o pior, de forma bem ordeira. Não vi mais razão continuar dando nó em rabo de cavalo e arrumei um emprego, como todo mundo. Hoje sou aposentado pelo INSS.

Foi uma visita realmente frustrante, mas ainda assim pedi para tirar uma foto minha com o saci. Em pouco tempo esqueci completamente aquele episódio; tanto que, quando olhava os antigos álbuns da família, demorei bastante tempo para me lembrar por que eu tinha uma foto com aquele idoso militante do MST.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Golem

Não existe conhecimento no mundo que possa salvar o homem da perdição.

Chamo-me David Bolzman, e há algum tempo descobri que tenho um tumor inoperável no cérebro; meu tempo de vida, disseram-me, é infelizmente curto.

A maioria das pessoas cairia imediatamente num estado de luto por si mesmo; eu, contudo, sempre fui muito pragmático, e decidi logo que não poderia perder tempo lamentando minha partida se eu ainda quisesse permanecer neste mundo.

Dediquei-me, portanto, exclusivamente ao meu estudo da Cabala, que antes me tomava apenas o tempo do divertimento. Acreditava que poderia descobrir ali a chave para minha salvação, e de fato encontrei: a receita exata para a criação de um Golem.

A ideia era simples: ao invés de animar um corpo literalmente de barro, eu usaria a fórmula para me transformar em um Golem, afinal, todos nós somos, em princípio, corpos de barro. Dessa forma, eu poderia manter minha matéria animada para sempre, enquanto minha alma manteria o controle de tudo.

Assim, preparei ritualmente uma placa de argila com a palavra Emet (que quer dizer “verdade” na língua sagrada) gravada, colocando-a debaixo da minha língua; e essa foi minha perdição.

Pois ao invés de imortalizar meu corpo, o ritual levou-me à total consciência de tudo; tornei-me, como Deus, conhecedor de todos os mistérios da Criação. Contudo, saber de tudo é também ser tudo; e, vi-me então transportado para uma terrível viagem por diversos estados de consciência, o que, à distância, só pôde ser encarado por meus familiares como loucura.

Mas o divino Caos (e entendo agora dos ouroboristas), por sorte, me trouxe novamente ao meu estado original, embora eu saiba que isso dure pouco tempo. Tenho, portanto, apenas alguns instantes para escrever minha história, antes de me unir ao Criador no pesadelo que é a onisciência.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Visão do Paraíso

A obra do meu falecido amigo Ricardo Narciso tem sido muito comentada atualmente, gerando uma infinidade de opiniões sobre seus textos. Alguns o consideram violentamente progressista, ou corajosamente reacionário, ou um apolítico irônico. É igualmente metafísico e materialista; experimental e conservador; um elevado esteta e um chulo inconsequente.

“Contraditório” é a leitmotiv dos detratores de Narciso. Para eles, tal defeito se deve à incapacidade do artista em lidar com a imensa variedade de sua própria obra. Dessa forma, teríamos várias aberrações, como o “clássico” ensaio sobre a relação da diáspora palestina e as comédias nonsense.

Há, contudo, aqueles que preferem “contradição”: o que Narciso realmente faz é um ataque constante à própria obra para tratar da impossibilidade atual de se chegar a uma Verdade. A contradição seria, portanto, não um defeito, mas sim o elemento formal que rege toda a obra do autor.

Tenho minha própria interpretação, biográfica, por assim dizer, baseada numa história interessante que Narciso me contou. Disse que caminhava aleatoriamente quando, sem querer, olhou para uma pessoa que vinha em sua direção e percebeu que era um anjo; entendeu isso quando, ao cruzar olhares com esse ser, pôde ter, por um milésimo de segundo, uma visão do Paraíso refletida em seus olhos.

Creio que esta seja a verdadeira chave para a sua obra. Embora ele nada tenha me dito, acredito que tal visão modificou meu amigo para sempre. Tendo consciência de que seria impossível representar o que vira, Narciso dedicou sua obra pós-encontro a ser um monumento da ruína. Atacando a tudo e, sobretudo, a si mesma, a obra de Narciso procura ser um espelho ao inverso da perfeição e ordem do Paraíso divino; e assim, o que meu amigo tenta dizer é que algo sublime também (ou só) pode ser humanamente construído por meio da destruição.