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quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Cérbero


Seguro a maçaneta e respiro bem fundo, preparando-me. Abro a porta: o cheiro é péssimo. Embora seja de manha, tudo é escuridão. O interruptor não funciona; acho que cortaram a energia. Noto que as janelas estão cobertas com folhas de papel coladas; arranco algumas, deixando a luz fazer o ser papel. No chão, roupas sujas, revistas velhas, garrafas vazias e marmitas com resto de comida estragada. Mas só começo a suar frio ao ver as seringas espalhadas.

Vou até o quarto. Há jornais na janela aqui também, e as sombras são quase uma massa só. Uma delas, contudo, se destaca; está jogada sobre algo que deve ser um colchão velho. Sei quem é: reconheceria meu filho em qualquer lugar, mesmo aqui, neste inferno. Ajoelho-me ao seu lado, tento ver se ele está respirando (eu não respiro). Ele volta a cabeça para mim e me olha nos olhos, mas não me reconhece.

É só quando tenho certeza de que a ambulância está vindo que abraço meu filho e choro. Ele está bem. Está doente, está quebrado, mas está vivo.

O som de latidos me desperta; ainda estou segurando a maçaneta. Olho para o lado e vejo a origem do barulho: um cão negro de três cabeças me encara com olhos de ferrugem. As visão deveria me causar horror, mas em vez disso me enche de tristeza; pois nesse momento me dou conta de que de fato estou diante da porta do Hades, do submundo, do inferno, e, inevitavelmente, surge a lembrança daquele aviso do poeta florentino: “deixai toda a esperança, ó vós que entrais”.


Respiro fundo e giro a maçaneta, sabendo o pior.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Teólogo



O tempo sempre foi uma questão central em nossos grandes monoteísmos, polvilhando constantemente problemas na mente de seus melhores pensadores. Desses justos, o maior dos tempos recentes foi, indubitavelmente, Walter Benjamin; entretanto, o título de mais interessante, deve, se há justiça no mundo, ser entregue ao padre argentino Xavier Alonso Müller.

Em 1947, Müller publicou o opúsculo intitulado “Apocalipse e Regresso”, no qual aponta a razão das desgraças humanas: ao invés de estar se aproximando do Fim, o mundo na verdade estaria se afastando dele. Explicando melhor: para Müller, o Apocalipse já teria acontecido há milênios. Nós, homens atuais, somos os descendentes daqueles que, impedidos de alcançar o Paraíso, foram condenados a passar o resto dos tempos na danação, ou seja, na própria Terra. Assim, todos os acontecimentos teológicos importantes dos quais temos notícia seriam meros reflexos distorcidos dos verdadeiros eventos ocorridos antes do Apocalipse, encenações de uma memória teimosamente saudosista.

Diante desse conhecimento revelador, Müller descarta as atitudes mais óbvias: implorar misericórdia a Deus ou orgulhosamente desprezá-lo. Para o padre, isso significaria apenas a manutenção das atitudes arquetípicas: fé intranscendível e ateísmo improdutivo. Sua solução, ao contrário, é muito mais refinada.

Müller propõe que a humanidade concentre todos os seus esforços no avanço científico até alcançar o nível tecnológico necessário para criar uma máquina do tempo. Dessa forma, seria possível levar, mesmo que de pouco em pouco, toda uma agora consciente humanidade para a época pré-apocalíptica, garantindo finalmente a todos a Salvação irrevogável.

É difícil fazer um comentário final sobre a obra de Müller. Há um, porém, que, em seu leve deboche, sempre me pareceu bastante pertinente: “Apocalipse e Regresso é uma obra exemplar, uma vez que, depois de Auschwitz, o mundo só poderia contar com um Messias que salvasse a humanidade passando a perna no próprio Deus”.