domingo, 29 de janeiro de 2012

Oferenda



Aquele era um clube noturno novo, cujos segredos eu ainda descobria. Naquela ocasião, a bebida exagerada havia me enchido de ousadia. Culpo essa situação pela minha atitude ao ver o sujeito falando com a garota que parecia estar na fronteira entre o pânico e a entrega.

Abordei o homem com um empurrão, perguntando se não via que incomodava a moça. Surpreendentemente, ele não reagiu; apenas levantou as mãos, desaparecendo com um sorriso cínico no intervalo entre a sombra e a luz. A moça, que deveria estar realmente assustada, havia fugido.

Naquela noite tive um pesadelo. Uma voz horrenda exigia, num sussurro, sua oferenda. Vi uma garota, cujo rosto era uma sombra, ser guiada por formas humanas deformadas até um altar, onde foi torturada rapidamente até a morte. Acordei com um calafrio que por horas não me deixou dormir.

A partir daí, todos os dias o pesadelo retornava, ficando cada vez pior. A voz passou de um sussurro para gritos. As formas sempre traziam uma moça diferente, e as torturas ficavam cada vez mais brutais e duravam horas. A sombra no rosto permanecia, mas no fim, quando ela finalmente morria, seu rosto se virava para mim revelando aquele sorriso cínico que já havia visto antes.

Tudo foi inútil para parar os pesadelos. Até que um dia, quando me vi à beira da ruína, descobri o que tinha de fazer.

Levei uma amiga ao clube; achá-lo entre as pessoas foi abominavelmente fácil. Apresentei-o a ela como um velho colega da faculdade; ele sorria como se tivéssemos combinado tudo antes. Disse que ia comprar uma bebida e fugi; os sonhos acabaram.

Desde então, não tive mais notícias dessa amiga. Evito conhecidos em comum, com medo do que possam me dizer. Sei o que fiz com ela, para o que a entreguei. Mas; mas...

sábado, 21 de janeiro de 2012

Curupira



Curupira atualmente trabalharia pro IBAMA, brincou certa vez um amigo meu que costumava bancar o folclorista espirituoso. Mal sabia ele que tal afirmação escarnecedora não poderia estar mais longe da natureza do Curupira. Ele não é um protetor das florestas. É verdade que seu rastro confunde os caçadores, mas isso não é proposital, apenas consequência das bebedeiras constantes que toma devido a seu temperamento.

Conheci-a há um tempo, a criatura tristonha. Não tinha os cabelos de fogo mais do que qualquer ruivo normal, mas os pés, de fato, eram voltados para trás. Era essa peculiaridade, aliás, o principal motivo da sua desgraça, pois tudo aquilo que o Curupira almejava era afastado de si justamente no momento em que tentava se aproximar do objeto desejado.

Quando Curupira me contou isso, tentei argumentar que ao menos ele sempre se afastaria daquilo que queria evitar, mas esse pensamento não melhorou seu humor. Em resposta baixou os olhos e sorriu tristemente:

- Pode ser, mas também não sei o destino da minha fuga, que no fim das contas pode ser algo ainda pior.

Se a Mãe Natureza deu alguma função ao Curupira, ele não faz ideia, e zomba que deve ser de “bobo da corte”: afinal, como pode uma criatura mitológica ser tal sinônimo da incerteza, se não por brincadeira?

Depois de pensar um tempo sobre a pergunta, concluí que a Mãe talvez soubesse o que estava fazendo. Pois me parece que Curupira é a única criatura antiga que ainda tem lugar no nosso tempo, tão duvidoso quanto pés virados para trás.

Minha conclusão trouxe certo ânimo e resolvi dar de presente ao Curupira uma reprodução do Angelus Novus, de Klee. Vi em seus olhos que havia me compreendido, mas que aquilo não mudava muita coisa. Baixou-os e agradeceu com seu sorriso triste.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Sertão do aço


O menino viu o grupo dobrando a estrada, longe. Correu para a porta da casa de barro, olhou para o pai lá dentro e disse:

- Cangaço.

O homem levantou abruptamente e fez sinal para a mulher permanecer sentada. Seu olhar dizia que resolveria tudo. Em seguida caminhou até a estrada, e esperou o grupo de cangaceiros de aço chegar.

Eram poucos, mas isso não aliviou a tensão do homem; esse tipo de gente era sempre perigoso, estando em bando ou sozinhos. Vários deles tinham implantes mecânicos, principalmente braços e pernas. O homem que à frente acenou com a mão e o grupo parou; tinha esferas vermelhas no lugar dos olhos e um implante substituindo o maxilar, dando-lhe o aspecto de uma caveira de metal.

- Precisamos de um lugar pra passar a noite, disse.

- Temos um lugar, mas não mais do que isso, respondeu o homem. Falta tudo o mais pra nós.

- Não precisamos mais que isso, além do silêncio. Temos macacos no rastro.

O homem acenou, indicando que o seguissem. Colocou-os num estábulo velho, há muito tempo vazio. Depois foi para casa, trancando sua família lá dentro, ordenando silêncio e rezando para que ele permanecesse em todo canto.

O grupo partiu ao amanhecer. O homem agradeceu, não a eles, mas à sorte deles terem deixado apenas as mesmas desgraças que encontraram. A mulher, contudo, não parecia tão satisfeita, e olhando o grupo com desprezo comentou:

- Olhe pra’quilo. Aquelas coisas no corpo, na cara, aberrações. Aquilo ali já não é mais gente.

O homem olhou para o grupo, para a esposa e para a casa, tristemente. Talvez o bando não fosse mais gente mesmo; mas isso ao menos significava que alguma vez o fora. E eles, vivendo naquela miséria, esquecidos por Deus, o que eles eram?

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012