quinta-feira, 27 de maio de 2010

Quimera

Do meu pai eu dupliquei seus braços. Eram ágeis, precisos, decididos. Julguei também que me seriam úteis para me ajudar a levantar, caso caísse.

Pouco depois, dupliquei o coração da minha mãe. Em meu peito agora cabiam muito mais sentimentos do que eu poderia imaginar, muito mais vida.

Meu melhor amigo era muito corajoso, e aquilo me encantava. Com a duplicação do seu tórax aprendi a andar erguido, sem receio do que eu estava sendo.

Da minha primeira namorada, dupliquei suas pernas, longas, lisas, as mais lindas que existiam no mundo.

No final do colégio um professor em particular me ensinou muito quando dupliquei sua cabeça.

Essas foram as primeiras partes que dupliquei em mim de outras pessoas, e hoje, passados tantos anos, ninguém consegue mais distinguir a diversas partes de outras pessoas que compõem essa colcha de retalhos humana que sou.

No entanto, sei que poucas pessoas no mundo podem dizer que se conhecem tão bem quanto eu me conheço.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Encruzilhada

José Gumerciano desde pequeno queria ser repentista. Quando criança o pai o levava para assistir os duelos de repente, e o conhecimento imenso daqueles artistas o encantava. Sobre tudo eles versavam da forma mais bonita possível, tudo encaixadinho nas fôrmas que eram obrigatórias. Mas conforme José Gumerciano foi crescendo, percebeu que nunca conseguiria cantar sobre tanta coisa como esses poetas faziam, pois de muito pouco sabia.

Foi então que ele decidiu que iria ser repentista a qualquer custo. Foi numa sexta feira 13 de meia noite a uma encruzilhada e invocou o Diabo, que lhe perguntou o que queria.

- Ser o maior repentista do mundo. Quero saber de tudo pra poder sempre ter o que cantar!

- Tudo? – sorriu o Diabo ironicamente e disse “Fiat Lux” – E Gumerciano se iluminou.

Mas qual foi a decepção de Gumerciano ao perceber que, apesar de saber sobre tudo e ter as reflexões mais profundas sobre tudo, não conseguia colocar isso num poema. E então ele entendeu sorriso do Diabo, que, poeta maldito por excelência, sabia muito bem que poesia não é feita de idéias – mas sim de palavras.

Hoje qualquer um conhece José Gumerciano: todos os anos ele ganha todas das categorias do prêmio Nobel. Menos o de literatura e o da paz, que ele jamais conseguiu encontrar.

Só como suplemento, queria deixar um video aqui que ilustra um pouco o texto, refletindo sobre o que o pobre Gumerciano só conseguiu entender pela metade.


domingo, 16 de maio de 2010

O homem transparente

A primeira atitude que tomaram quando se notou que ele começava a ficar transparente foi tirá-lo do cargo de chefe de relações públicas. Não era mais cabível que alguém no seu estado atual continuasse a lidar com pessoas, e em seu lugar colocaram uma jovem executiva que brilhava em todas as tonalidades possíveis. Mas, talvez por acreditarem no seu potencial como funcionário, não foi despedido, apenas transferido para um setor mais impessoal, revisando papéis numa sala escondida aonde pouca gente ia. Tudo bem, ele pensava, assim que eu melhorar, poderei voltar ao cargo que é meu por direito.

Mas para seu desgosto, a situação só se agravava. Conforme passava o tempo ele ia ficando mais translúcido, como se virasse um fantasma que luta pra ser notado pelos entes queridos. Certa vez ele se olhou no espelho e se reconheceu, mas não se viu.

Um dia perceberam que ele não havia ido trabalhar, o que era estranho para um funcionário responsável como ele. Ligaram para sua família, mas de lá informaram que ele não tinha voltado para casa após o expediente.

Ou talvez ele tenha voltado, e continue trabalhando e pagando as contas de casa como sempre fez, porém ninguém consegue notar. Mas isso não há como se saber.

domingo, 9 de maio de 2010

Amor tantalônico

Tântalo foi aquele cara condenado por Zeus a ficar em um pequeno poço por toda a eternidade passando fome e sede. Sempre em pé, tentava tomar a água que lhe batia no queixo, mas ela escoava; tentava pegar os frutos ao alcance de seu braço, mas o vento afastava-os. A eternidade é muito tempo, por isso ele foi liberto do flagelo. Magro e desidratado, foi acolhido por um Velho e por sua Bela Filha.

Após tanto tempo sofrendo, aprendeu que não podia ter tudo o que queria. Contentava-se com o pouco que lhe era oferecido. A sopa vinha sem carne, o pão era duro, o copo com água tinha restos de Nescau.

A Bela Filha apaixonou-se por ele, um semi-Deus, ex-predileto dos deuses, porém entendeu que não merecia ser correspondida.

Hoje, Tântalo não é mais rei, e namora a Rosângela, uma garota feia e sem atrativos, porque tem medo de ficar sozinho.

Do grande Igor F. Martins, crítico literário desempregado e escritor ninja.

domingo, 2 de maio de 2010

Dragões

Eu costumava sonhar pequenos dragões todas as noites. Nos meus sonhos eles eram de todos os tamanhos, formas e cores, voando e soprando fogo de um lado para o outro como se brincassem de fazer espetáculos de piruetas pirotécnicas, algo meio circense, meio conto de fadas.

Mas quando eu prestava atenção nos rostos deles, sentia um calafrio que me deixava nervoso, pois todos ostentavam um sorriso de ironia maligna. E quando percebiam minha inquietação davam pra gargalhar perversamente, girando no ar em meio a um caos de fogo.

Certa noite um desses dragões escapou do meu sonho e, rindo maldosamente, colocou fogo em minha casa. Ainda consegui escapar do incêndio com vida, mas perdi tudo o que havia conseguido juntar em todos esses anos.

Hoje em dia eu já consigo dormir a noite toda, mas, por medo dos dragões, deixei os sonhos para trás.