segunda-feira, 26 de abril de 2010

A menina de um olho só

Ela nascera apenas com um olho só, filha de uma árvore com uma pedra. Herdou da mãe a paciência e do pai a dureza.Aprendeu a falar com um ano de idade, aos dois anos de idade falava oito línguas e descobriu que era a reencarnação de Guimarães Rosa, aos três anos de idade foi agraciada com uma cadeira na academia brasileira de letras tornando-se uma imortal, substituiu Paulo Coelho que renegou a literatura e abriu uma loja de conveniência na Rússia. Além dos seus dotes lingüísticos e literários era uma profunda conhecedora da vida provando que para melhor enxergar bastava um olho só e com isso atraindo multidões que vinham lhe pedir conselhos de todas as partes do globo terrestre e ás vezes alguns visitantes interplanetários também marcavam presença. Aos sete anos de idade teve uma crise existencial e decidiu ir meditar no morro do alemão ao som de balas e pagodes, um ano depois alcançou a iluminação, arrancou o único olho com o qual nascera e o jogou na Baía de Guanabara, seu gesto de revolta nunca foi esquecido e ergueram no corcovado um monumento a menina de um olho só, onde milhares de pessoas vão todos os anos pedir uma graça ou uma iluminação.

Fim

De Clovis

terça-feira, 20 de abril de 2010

A revolução dos vivos

Num futuro próximo a ideologia terá tomado tamanha proporção e de tal forma convertido os fatos históricos em fatos naturais, que a ação revolucionária por excelência será uma recusa da própria natureza no que nela há de mais inevitável: a morte. Assim, várias pessoas que lutavam contra a ordem vigente do mundo simplesmente pararam de morrer.

Não demoraram para serem tachados de subversivos, e o discurso oficial pregou que ser imortal era ser contra o Estado. A imprensa, tentando colocar o povo contra os revolucionários, produziu uma série de reportagens que denunciava a falta de caráter destes. Criou-se um slogan: Imortalidade é imoralidade.

Apesar de tudo, o movimento não cessou, e pouco a pouco mais pessoas iam se juntando ao grupo, de modo que em algum tempo, finalmente conseguiram eleger um candidato do PI (Partido dos Imortais) a um cargo importante do governo, cheio de promessas de mudança.

E com ele, mais tarde, chegaram outros. Muitos outros. As mudanças prometidas, contudo, jamais chegaram.

Um dia descobriu-se que o líder do partido tinha câncer de estômago. Morreu em menos de dois meses depois de receber a notícia.

domingo, 11 de abril de 2010

BBO – Big Brother Olimpo

A TV, visionária, resolveu fazer um desses reality shows onde trancam um grupo de personalidades numa casa, mas com um grupo diferente: somente criaturas mitológicas gregas. Foram, assim, convidados Hercules, Afrodite, Pégasus, Medusa, Aquiles, Apolo, Helena, Esfinge e Tirésias. Começado o jogo o público foi tratando de eliminar os que menos gostava. Pégasus saiu logo porque ficava, por assim dizer, o tempo todo com cara de cavalo. Esfinge foi a segunda, ninguém entendia nada do que ela dizia. Atenas e Apolo não conquistaram o público por serem considerados “metidos” demais. Tirésias trouxe pra si o apoio da comunidade GLTS, mas a maioria preconceituosa o eliminou. Aquiles teve um romance com Helena, apesar de a moça namorar um rapaz que sacrificara a pátria pelo seu amor, o que causou revolta no público que tratou de tirá-los logo que pôde. Na final sobraram os sarados Hercules e Afrodite e a feiosa Medusa, que por sinal acabou levando o prêmio. Isso porque, apesar de ser uma górgona antipática e desagradável, a produção do programa, cortando cenas aqui e editando acontecimentos ali, pintou-a como a mais justa e honesta de todos os participantes. O motivo era simples: apesar dos seus inúmeros defeitos, quando ela aparecia, o público simplesmente ficava petrificado em frente a TV.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Ao nascer do sol

O Homem dirigia rapidamente, pois tinha pressa de chegar ao pequeno sítio. Ele e sua família viveram os melhores momentos de suas vidas naquelas terras, e, portanto, não havia lugar melhor no mundo para descansar pelo resto da eternidade. Iam com o Homem no carro sua mulher e seus dois filhos pequenos, todos mortos. Mortos pelo Monstro, que agora deveria pagar pelo que fizera. Por isso o Homem dirigia tão rapidamente: para cumprir sua ansiada vingança.

O Homem tinha consciência de que o Monstro só fizera o que fizera porque não podia controlar sua imensa fome, e que tentara com todas as forças ser um humano. Mas não era o bastante; o Monstro deveria morrer, para que isso jamais se repetisse. E ao Homem cabia o papel de aplicar-lhe a justa sentença.

O Homem enterrou sua família logo que chegou ao sítio. Em seguida, foi até sua árvore favorita, arrancou-lhe um galho pontiagudo e se deitou, olhando para o oriente. Com uma força sobrenatural enfiou o galho no peito e, paralisado, esperou o nascer do sol que, junto com um novo dia, traria a sua ansiada vingança, sua justa sentença.