domingo, 24 de abril de 2011

Companhia

Ele sempre está ao meu lado, onde quer que eu vá. A nossa união é umbilical, só eu o conheço profundamente, e ele a mim, de modo que outras pessoas o ignoram. Elas têm o delas também, mas nossa incapacidade de realmente ver as pessoas torna difícil percebê-lo.

Não adianta pedir pra ele dar um tempo, pra que eu possa passear sozinho, ir na padaria, ir a uma festa, ele não cede, e diz que não pode viver sem mim. Tenho o coração mole, e consinto. Talvez ele precise mais de mim do que eu dele.

Será que devo me livrar dele? É uma parte importante de mim, e sem ele eu não sou completo. Está certo que ele assusta um pouco quem eu deixo vê-lo, mas não quero medrosos à minha volta. Nem é tão assustador assim.

Não sei quando eu percebi a presença do fantasma, acho que ele sempre esteve ali.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Zumbi

Eu sempre achei que essa coisa de zumbi fosse uma metáfora. Mas nunca pensei nisso como uma ideia original, pelo contrário. Pra mim sempre pareceu óbvio a relação dos mortos-vivos comedores de cérebro, que vivem em função da fome, sem mente, sem raciocínio, transferindo sua doença para outros seres humanos sadios através de uma mordida violenta, com o “contexto do capitalismo atual”, o “consumismo descontrolado”, a “burrice generalizada”, essa porra toda. E pra quem ainda duvidava, aquele filme lá do Romero deixava isso absolutamente claro.

De modo que a idéia da metáfora zumbi era pra mim senso comum. Claro que agora sei que não é bem assim. Eu mesmo me tornei um zumbi há uns tempos atrás, depois de ter sido mordido na canela por um mendigo bêbado (por ter me recusado a lhe dar esmola). Agora sou obrigado a comer carne humana para sobreviver, sou incapaz de me recuperar de ferimentos (esse problema é especialmente desagradável), e um dia desses transformei um estudante adolescente (mordi o safado quando tentou me assaltar, com um canivete!). Claro, ainda mantive meu “intelecto”. Mas alguma coisa tinha de ser lenda, né?

Então ficou óbvio que não existe merda de metáfora alguma. A coisa é realmente como diziam. Acho que é por isso que as perguntas que me faço a respeito de minha situação nunca têm nada a ver com “questões filosóficas”, tipo “o que é a morte?”, ou onde “está deus agora?”, ou “o que define o ser humano?”. A pergunta que sempre me faço é: será que minha vida realmente mudou tanto?

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ditadura

Naquele tempo os subversivos tinham muito medo dos infiltrados; mas isso somente porque eles não sabiam da existência da polícia psiônica.

Éramos peritos em certos tipos de habilidades como leitura de mentes, rastreamento psíquico, previsão do futuro, essas coisas. Uma operação bem organizada era capaz de detectar um grupo revolucionário, apreender seus planos e localizar sua sede em um pouco mais de uma semana, tempo impossível para qualquer polícia secreta. De modo que posso dizer sem exagero que fomos peça-chave para o sustento do estado de exceção por tanto tempo.

Nossa eficiência não permitiria jamais deixar de localizar um subversivo no centro da minha própria família.

Mas meu filho era, afinal, meu filho; e mesmo com uma série de golpes mentais e invasões telepáticas, não nos foi possível descobrir o núcleo de seu grupo paramilitar. Assim, foi preciso partir para a tortura física, até que sua mente ficasse enfraquecida o bastante para conseguirmos extrair a informação necessária.

Não lembro que desculpa dei (ou deram) à minha mulher. Só lembro que quando tudo aquilo acabou e voltei para casa, tentei chorar, mas não pude.

Hoje entendo que uma ditadura não tem a ver com sombras, silêncios, ou medo; uma ditadura é poder saber o que há de mais profundo e escondido nos outros, mas, quando olhar e procurar lá no fundo si mesmo, não encontrar nada além de um monte imenso, doente e pútrido, de vazio.