sábado, 25 de dezembro de 2010

Sonhado

Desde que me lembro, nunca pude sonhar. Não sei se é uma doença, se me foi ensinado quando era criança, ou se é fruto de alguma evolução humana, dessas que nos fizeram ter menos dentes: talvez o sonhar tenha se nos tornado completamente inútil.

O fato é que meu sono, sem o sonho, é como que também ausente. Quando fecho os olhos, à noite, e os abro já de manhã, é como se nem um minuto tivesse passado; um espaço em branco no qual o tempo não consegue penetrar.

Dessa forma vivo numa existência contínua, sem nenhum intervalo do nada. Vejo tanta coisa, o tempo todo, que tudo já está embaraçado, e o que deveria ser real e nítido é para mim como uma neblina, um ar tão visível que não nos deixa ver nada.

Esse mundo embaraçado me faz perguntar se não sou somente o sonho do sonho de algum homem, que, por um limite de desdobramento, me impede de sonhar.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Dilúvio

Dizem (Ele disse) que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Não creio que isso seja verdade. Se o fosse, seríamos capazes de recriar os milagres divinos, mesmo que em escala reduzida, o que não é efetivo. Exemplifico.

Lembro-me bem do Dilúvio; Deus, entristecido com o rumo da humanidade, teve um momento de fraqueza e deixou escapar um soluço, que, embora abafado, foi incapaz de controlar uma lágrima que escorreu pelas barbas infinitas e caiu na terra, inundando o mundo.

Poucos de nós nos salvamos. Dos que escaparam às águas, muitos se foram por conta da miséria decorrente dos dias passados em meio a um inesgotável azul, sem vermelho, nem verde.

Mas a minha miséria foi ainda maior; pois, além de padecer na fome a na dor, tive de assistir ao lento morrer das pessoas que conhecia e amava.

E chorei. Por muito tempo, mesmo depois de seca aquela lágrima, divina, derramei as minhas, mortais, supostamente irmãs daquela, mas que não foram capazes de afogar nem minhas mágoas.