Mostrando postagens com marcador doença. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador doença. Mostrar todas as postagens

domingo, 28 de abril de 2013

Uirapuru



Um amigo (que soube disso quando foi visitar sua pequena cidade natal) contou-me essa história há pouco tempo, num tom entre verdade triste e mentira enigmática; talvez não haja nenhum outro tom adequado para ela, afinal.

Matias, filho do prefeito da cidade, sempre foi um menino doente. Ao terminar o ensino médio, foi obrigado a trancar-se em casa, devido à fraqueza constante. Isolado, dedicou-se, freneticamente, a ler e escrever, principalmente poesia. Algum tempo depois, reuniu seus poemas e lançou um livro, chamado “Últimos cantos”. Seu pai bancou a publicação e ajudou a distribuir, principalmente entre os antigos colegas de Matias.

Pouco depois veio, terrível e inexplicável, a onda de suicídios. Não muitos, mas o suficiente para abalar a cidadezinha. Não demoraram a perceber que todos os suicidas tinham recebido e, provavelmente lido, “Últimos cantos”. Surgiu o boato de que o livro seria amaldiçoado, vingança invejosa do jovem que não podia viver.

Alguém sugeriu que fossem tirar satisfação com Matias, obrigá-lo a confessar e retirar a maldição. Não o fizeram pelo respeito que seu pai tinha na cidade. De toda forma, pouco depois o próprio Matias morreria também, vítima da doença sem nome que o corroía desde sempre.

A história, como não poderia deixar de ser, me inquietou bastante. Meu amigo me revelou que possuía um dos exemplares de “Últimos cantos” que sobreviveram à tragédia. Não sem um vergonhoso receio, li o livro. É fabuloso. Ao ponto de me deixar sem palavras para descrevê-lo.

Lembrei-me agora do que meu pai me contava sobre o Uirapuru. Dizem que seu canto é tão belo que toda a floresta, em reverência, se cala para ouvi-lo cantar.

O livro de Matias deveria se chamar “Uirapuru”; assim, não haveria mais nenhum suicídio misterioso, nenhuma maldição. Pois poderia haver maior silêncio do que o da morte?

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Golem

Não existe conhecimento no mundo que possa salvar o homem da perdição.

Chamo-me David Bolzman, e há algum tempo descobri que tenho um tumor inoperável no cérebro; meu tempo de vida, disseram-me, é infelizmente curto.

A maioria das pessoas cairia imediatamente num estado de luto por si mesmo; eu, contudo, sempre fui muito pragmático, e decidi logo que não poderia perder tempo lamentando minha partida se eu ainda quisesse permanecer neste mundo.

Dediquei-me, portanto, exclusivamente ao meu estudo da Cabala, que antes me tomava apenas o tempo do divertimento. Acreditava que poderia descobrir ali a chave para minha salvação, e de fato encontrei: a receita exata para a criação de um Golem.

A ideia era simples: ao invés de animar um corpo literalmente de barro, eu usaria a fórmula para me transformar em um Golem, afinal, todos nós somos, em princípio, corpos de barro. Dessa forma, eu poderia manter minha matéria animada para sempre, enquanto minha alma manteria o controle de tudo.

Assim, preparei ritualmente uma placa de argila com a palavra Emet (que quer dizer “verdade” na língua sagrada) gravada, colocando-a debaixo da minha língua; e essa foi minha perdição.

Pois ao invés de imortalizar meu corpo, o ritual levou-me à total consciência de tudo; tornei-me, como Deus, conhecedor de todos os mistérios da Criação. Contudo, saber de tudo é também ser tudo; e, vi-me então transportado para uma terrível viagem por diversos estados de consciência, o que, à distância, só pôde ser encarado por meus familiares como loucura.

Mas o divino Caos (e entendo agora dos ouroboristas), por sorte, me trouxe novamente ao meu estado original, embora eu saiba que isso dure pouco tempo. Tenho, portanto, apenas alguns instantes para escrever minha história, antes de me unir ao Criador no pesadelo que é a onisciência.

sábado, 16 de julho de 2011

Sísifo

Minha esposa e eu estamos muito doentes. Ela está morrendo; eu, talvez já esteja morto.

Ela tem leucemia, num estágio terminal. Os médicos ainda aparecem aqui todos os dias, falam coisas incompreensíveis. Eu já quase não escuto mais. Ela, tenho certeza que não escuta há muito tempo.

Todos os dias eu me sento ao lado dela e vejo-a sofrer. Todos os dias alguém lhe dá drogas que parecem não fazer qualquer efeito; tentam fazê-la comer somente para colocar tudo para fora pouco depois; ela é invadida por mãos geladas, que ao invés de dignidade só lhe trazem humilhação; ela pede para se ver no espelho, como uma tortura, e chora pelo que vê.

Todos os dias ela me pede para matá-la.

Eu sempre nego. Digo que é impossível, que a amo, que isso é injusto, que não sou um assassino, que isso seria suicídio, que não posso perdê-la. Eu choro, ando pelo quarto, aperto minhas mãos até sangrar.

Ela só me olha tristemente e diz eu sei.

No fim eu sempre atendo seu pedido. Uso um travesseiro, desligo botões, aplico doses gigantescas de drogas que roubo do hospital. Mas no outro dia eu acordo sentado ao seu lado e vivemos o sofrimento novamente.

Antes eu achava que era só loucura, que eu vivia em minha mente o que eu não tinha coragem de fazer na realidade. Mas agora eu já não sei; tudo é tão real, toda a dor, as lágrimas, o último suspiro diário de minha esposa.

Todos os dias eu olho para trás e procuro por meus pecados. Por mais que eu tente fazer dos meus erros abominações, tenho por fim que admitir: sou um bom homem. Mas quando anoitece e eu tenho que matar minha esposa novamente, sempre chego à conclusão de que estou no inferno.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Herdeiros de Lycaon

A licantropia é um fato. Porém, ao contrário do que se pensa, não se trata do velho mito do homem que se transforma em lobo; muito menos da neurose que faz o homem pensar ter sido transformado em animal. Isso seria ótimo, pois ao menos teríamos uma ideia do que estamos enfrentando.

Digo isso porque a licantropia real é ainda um mistério; sabe-se que ela existe, seus efeitos, e nada mais. É assustador pensar que algo tão macabro e comum esteja escondido das pessoas; ou que seja algo tão evidente que as pessoas se recusam a se dar conta.

A licantropia real (que curiosamente só aparece no início do século XX) é a doença que transforma homens em animais, de qualquer tipo, desde que seja mordido pelo bicho. Contudo, ao contrário do mito e da neurose, a transformação é real e irreversível. Mas o mais surpreendente é que o inverso também é válido: um animal mordido por uma pessoa infectada consequentemente se transforma em ser humano.

O maior motivo para a invisibilidade da licantropia são suas próprias vítimas: os párias, homens ou animais. Mendigos, menores abandonados, animais de rua, pragas (me pergunto se Kafka conhecia a doença); esses são nossos licantropos, que se metamorfoseiam de uns para os outros, até acabar sacrificados, anonimamente, como viveram.

A licantropia não é uma alegoria. Antes o fosse, pois assim demonstraria que pelo menos alguém reflete sobre ela – o que abrandaria um pouco minha solidão. Pois não posso negar que ao menos eu resolvi encarar o problema – o qual, na verdade, considero menos uma doença do que um sintoma. Um sintoma, talvez, desses nossos tempos, em que mesmo as mais profundas certezas, tanto as nossas quanto as dos outros, são impiedosamente arruinadas, em favor de uma miséria que não deveria caber a ninguém.