quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Teólogo



O tempo sempre foi uma questão central em nossos grandes monoteísmos, polvilhando constantemente problemas na mente de seus melhores pensadores. Desses justos, o maior dos tempos recentes foi, indubitavelmente, Walter Benjamin; entretanto, o título de mais interessante, deve, se há justiça no mundo, ser entregue ao padre argentino Xavier Alonso Müller.

Em 1947, Müller publicou o opúsculo intitulado “Apocalipse e Regresso”, no qual aponta a razão das desgraças humanas: ao invés de estar se aproximando do Fim, o mundo na verdade estaria se afastando dele. Explicando melhor: para Müller, o Apocalipse já teria acontecido há milênios. Nós, homens atuais, somos os descendentes daqueles que, impedidos de alcançar o Paraíso, foram condenados a passar o resto dos tempos na danação, ou seja, na própria Terra. Assim, todos os acontecimentos teológicos importantes dos quais temos notícia seriam meros reflexos distorcidos dos verdadeiros eventos ocorridos antes do Apocalipse, encenações de uma memória teimosamente saudosista.

Diante desse conhecimento revelador, Müller descarta as atitudes mais óbvias: implorar misericórdia a Deus ou orgulhosamente desprezá-lo. Para o padre, isso significaria apenas a manutenção das atitudes arquetípicas: fé intranscendível e ateísmo improdutivo. Sua solução, ao contrário, é muito mais refinada.

Müller propõe que a humanidade concentre todos os seus esforços no avanço científico até alcançar o nível tecnológico necessário para criar uma máquina do tempo. Dessa forma, seria possível levar, mesmo que de pouco em pouco, toda uma agora consciente humanidade para a época pré-apocalíptica, garantindo finalmente a todos a Salvação irrevogável.

É difícil fazer um comentário final sobre a obra de Müller. Há um, porém, que, em seu leve deboche, sempre me pareceu bastante pertinente: “Apocalipse e Regresso é uma obra exemplar, uma vez que, depois de Auschwitz, o mundo só poderia contar com um Messias que salvasse a humanidade passando a perna no próprio Deus”. 

sábado, 29 de setembro de 2012

Equação


Joaquín Gómez era um grande matemático. E como todo grande matemático, era também um filósofo. Consequentemente, o que Gómez, no fim, buscava, era uma forma de transcendência, que, devido talvez à influência do catolicismo (sempre ele), equivalia, para nosso matemático, à felicidade da raça humana.

Assim, Gómez dedicou grande parte de sua atividade intelectual a encontrar um caminho definitivo para a evolução da humanidade. Este só poderia ser descrito, afinal, através da linguagem matemática, a única que não permitiria dubiedade.

Cabe aqui, para não enganar o leitor, um esclarecimento de ordem cronológica: Gómez era um contemporâneo nosso, um “filho do século XXI”, se é que tal coisa existe.

De modo que o pensamento de Gómez é uma resposta consciente a esse caldeirão fumegante de incertezas no qual cozinhamos. Essa consciência é notável no método do matemático.

A partir de uma longa e minuciosa pesquisa em inúmeros tratados de antropologia e filosofia, Gómez pôde chegar um número de valores privilegiados e negados pela humanidade de maneira geral. Transformados em elementos, tais valores puderam ser organizados na forma de uma equação cuja raiz equivalia à felicidade eterna do ser humano.

Intitulado “O Teorema do Progresso” (El Teorema del Progreso), o tratado de Gómez que apresenta essa equação é uma obra-prima das ciências humanas, matemáticas e da filosofia. Contudo, as editoras não pensaram assim. As universitárias acharam a obra de Gómez uma “brincadeira positivista de mau-gosto”; as comerciais nem se deram ao trabalho de responder.

Sem possibilidades de bancar ele mesmo uma edição, e intentando atingir um público maior, sobrou a Gómez publicar sua obra no formato de um blog. Atualmente, contudo, o link para a página está quebrado. Gómez desapareceu, sua obra não pode ser mais lida, e a humanidade segue seu próprio caminho, em direção a um abismo qualquer.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Spam



Já faz algum tempo que o recebi por e-mail de alguma amizade ou ex-amizade; não me lembro bem. Sei que, como a mensagem parecia confiável, deixei-o entrar, e só o percebi quando era tarde. Quando me dei conta, tentei deletá-lo imediatamente; mas fui surpreendido com seu apelo de que não o matasse. Aquilo, como não poderia deixar de ser, me comoveu; e é por isso que ele até hoje está aqui.

Seu humor reúne aqueles três atributos que, combinados, tornam qualquer um insuportável: ironia, sarcasmo e cinismo. Mas, talvez devido a sua dimensão (tem só alguns bytes), eu geralmente o acho divertido; ele me lembra Woody Allen.

Sua brincadeira favorita é a ameaça, e gosta de dizer que vai “escancarar minha privacidade”. Não sou uma pessoa de segredos, mas não gosto que leiam minha literatura (acho-a muito ruim). Quando ele se aproxima da pasta “Obras”, faço cara feia e ele recua deixando escapar um sorrisinho que é como um lag, e que me faz estremecer.

Pensei em chamá-lo Odradek, mas depois percebi que seria despropositado. Não o chamo nada e ele vem quando quer.

Três ou quatro vezes sonhei que ele escapava da tela e vinha até meu quarto onde eu, efetivamente, dormia. Carregava, de alguma forma, uma faca. Ou talvez fosse um estilete. Não me fazia mal, mas me espiava por horas a fio, respirando calmamente, como quem observa a paisagem correndo pela janela de um trem.

Sei que é mau e que me odeia; no fundo, também o detesto. Mas o suporto por saber que posso me livrar dele quando quiser. Ele também tem consciência desse fato, mas, desde seu apelo inicial, não tocamos no assunto. Pergunto-me se essa situação é certa. Mas sei que é a única forma para que ambos possamos continuar existindo.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

H. P. Lovecraft



Entender verdadeiramente a obra de um autor requer uma chave muitas vezes encoberta pela própria obra; é o que acontece com H. P. Lovecraft. Textos como The Call of Cthulhu e Supernatural Horror in Literature brilharam tanto em sua grandeza que ofuscaram os dois textos seminais da obra do escritor: Pickman’s Model e Notes on Writing Weird Fiction.

O que talvez tenha dificultado o reconhecimento da importância desses textos foi a incapacidade, por parte dos leitores de Lovecraft, de considera-los em conjunto, atentando assim para seus detalhes mais importantes. Vejamos: Notes..., um texto crítico, parece uma espécie de manual de como escrever contos fantásticos.  Principal argumento: o elemento vital de um conto fantástico não é seu enredo, mas sim a atmosfera criada pelo narrador. Ou seja, a qualidade do conto se deve mais a uma questão de técnica do que de imaginação.

Pickman’s Model conta a história de um homem profundamente abalado pelas sinistras telas de um exímio pintor: Pickman. Suas telas, extremamente realistas, versam sobre monstros horríveis. Contudo, não é a temática das obras que desestabiliza o narrador, mas sim a incrível técnica de Pickman; o realismo de suas telas se deve ao fato de que se utilizava de modelos reais – monstros reais.

As mãos do leitor atento começam a tremer, intuindo aonde quero chegar: a excelência da obra do autor norte-americano é fruto dos modelos que ele – assim como Pickman – tinha à disposição. O fato de que Lovecraft tivera diversas crises nervosas durante sua vida adquire extrema relevância: como mostra sua literatura, o conhecimento do horror conduz à loucura. “Mas isso é biografismo”, argumenta o leitor inquieto. Melhor assim. Dormirá melhor ao fingir ignorar que, na submersa cidade de R'lyeh, o grande Cthulhu espera, dormindo, o dia em que acordará para destruir a humanidade.

domingo, 19 de agosto de 2012

Um ignorado milagre


No ano de 1953, na sertaneja vila de Taperinha, o padre Damião Queiroz da Fonseca chamou a atenção por ter desenvolvido nas costas, de repente, um belo par de asas brancas.

Sendo padre, a associação com os anjos foi instantânea, e o milagre espalhado por todo o sertão. A notícia chegou ao bispo de Petrolina, que, concomitantemente maravilhado e desconfiado (ossos do ofício), decidiu verificar pessoalmente o ocorrido.

Lá, o Bispo pôde contemplar o milagre aplumado do padre Damião, inquirindo-lhe a atitude que lhe dera tal graça. Nada, sorriu tímido o padre, e o Bispo reconheceu na humildade do pároco, bem como no atrofiamento de seus braços, a prova definitiva de que se deparava com um santo[1].

O vaticano, contudo, não considerou a narrativa do Bispo uma prova tão definitiva assim, receitando cuidado antes de assumir a santificação. Disse ao Bispo que aguardasse, pois logo chegaria um representante para averiguar o caso.

Enquanto isso, padre Damião ia mudando. Sumiram os braços, as pernas arquejaram, o tronco inclinou-se, o peito estufou, os olhos abobalharam, e, finalmente, nasceu-lhe penas pelo corpo e um bico na cara bem a tempo de receber o visitante romano. Este, embora admirado com o pombo gigante, disse que não podia canoniza-lo: “Santos são apenas homens, não bichos”[2].

O Bispo ainda procurou atentar para o milagre do padre que se tornara manifestação do Espírito Santo, mas o fato é que se tornou insuportável a sujeira e os arrulhos monumentais produzidos pelo ex-padre. Assim, Taperinha aproveitou bastante a tranquilidade depois de finalmente se livrar do seu milagre.


[1] Segundo o Bispo, diminuição dos braços do padre era um sinal do toque da divindade uma vez que este “ficaria livre de tocar com as mãos nas impurezas do mundo material” (VENÂNCIO, Gilmar. História da Diocese de Petrolina).
[2] Idem, Ibidem.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Perpetuum Mobile




Apenas no século XXI foi criada a primeira máquina automática de criar relatos. Seu funcionamento era simples: a partir de uma base primária de narrativas orais recolhidas aleatoriamente (por exemplo, conversas de mesa de bar, historias de pequenos acidentes, depoimentos de testemunhas em estabelecimentos jurídicos, antigos casos amorosos, anamneses médicas, etc.), a máquina era capaz de recombinar trechos dessas narrativas e criar novos relatos de maneira completamente independente.

Contudo, para o próprio espanto de seu criador (um engenheiro alemão chamado Bertolt Gumbrecht), máquina automática de criar relatos passou a incorporar suas próprias criações como componentes de sua base primordial. Alimentada pela própria voz que produzia, a máquina passou a criar histórias independentes da realidade que a circundava, passando ao mesmo tempo a negá-la e a reforçá-la muitas vezes na mesma narrativa contada.

Assim, como o passar do tempo, as narrativas da máquina automática de criar relatos desenvolveram-se paralelamente à história humana, embora uma ocasionalmente antecipasse ou recontasse a outra. Exemplo: em 2262, a máquina criou o relato de um certo engenheiro alemão chamado Bertolt Brecht, inventor de uma máquina automática de criar relatos. A coincidência com a história, contudo, chamou menos atenção do que o “erro” no nome do personagem. Se a máquina produzia narrativas aleatórias ininterruptas, não seria improvável que um dia ela acabaria contando seu próprio nascimento. O “erro”, por outro lado, não deixava de sugerir certa ironia impossível para uma máquina – a não ser, sugeriam os mais misteriosos, que algum tipo de consciência houvesse brotado daquele emaranhado de relatos.

Num futuro mais distante, por qualquer uma das inúmeras razões possíveis, a humanidade acabará consigo mesma. Sobrará, contudo, protegida debaixo dos escombros da civilização, a máquina automática de contar relatos, ainda a criar histórias, a promessa passada de que um dia andamos por sobre a superfície da terra.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Continuidade dos parques


Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à chácara; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns aluguéis, voltou ao livro com a tranqüilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir
descolando-se  linha a linha daquilo que o rodeava e de sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a  palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do monte.

Antes entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara machucada pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela fazia estalar o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e por baixo gritava a liberdade refugiada. Um diálogo desejante corria pelas páginas como riacho de serpentes e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como que querendo retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo  repasso sem dó nem piedade interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Começava a anoitecer.

Já sem se olharem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Da direção oposta ele virou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu, por sua vez, apoiando -se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O  mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam -lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma galeria, uma escada carpetada. No
alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

Participação especial do meu amigo Julio Cortázar. (A tradução não é minha)


quinta-feira, 31 de maio de 2012

Formador


O primeiro grande desejo de Adam Silverman foi ser enciclopedista. Maravilhado, segundo ele mesmo, desde pequeno com a vasta biblioteca paterna, sonhava em reunir tudo o que descobria naquele universo de palavras num só local, compartilhando com os outros sua própria euforia da revelação. As enciclopédias, contudo, já existiam.
Anos mais tarde Silverman doutora-se em filosofia e passa a dar aulas em uma universidade. Mais preocupado com a possibilidade de levar seus alunos a aprenderem a pensar do que com a “produção intelectual” propriamente dita, Silverman ainda segue os propósitos da juventude. Entretanto, a pressão por parte de seus colegas de departamento e o desinteresse generalizado dos alunos o levam a abandonar a carreira. Some por algum tempo.
Volta com um novo projeto: a montagem de grandes obras em formas de musicais que são exibidos na Broadway. Sua estreia, com uma versão das Confissões de Agostinho, é um grande sucesso de público e crítica. A partir daí, faz várias adaptações aclamadas, a mais famosa provavelmente a de Discurso do método, que inclusive contou com Jude Law no papel do Cogito. Acredita finalmente ter alcançado seu objetivo.
Seu sucesso é destruído após uma ousada montagem do Alcorão, que, auxiliado pelo clima político, desperta ódio em diversos setores. Sofre um atentado que quase tira sua vida (cuja autoria foi assumida por um grupo xiita) e pouco depois é processado por anti-semitismo, apesar da sua ascendência hebraica.
Nunca mais realiza montagens. No entanto, segundo revelaram alguns amigos mais próximos, está trabalhando numa versão pornográfica de Ser e Tempo, que deverá estrear ano que vem.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Um mito



Esta história foi recolhida pelo antropólogo francês Jean-Henri Pouillon, quando estudava a tribo boliviana Pachucua.

“Hoje podemos contar, mas nem sempre foi assim. Há muito tempo atrás Tarucacha fez os homens como eles somos; e os ensinou a caçar, a pescar, a tecer e a viver juntos, e tudo o precisamos saber até hoje. Então Tarucacha voltou ao céu, porque estava muito cansado de trabalhar tanto.

Mas, quando depois de descansado, Tarucacha voltou a terra para visitar seus filhos, viu que tudo tinha mudado. Eles tinham tido muitos filhos, e seus filhos também tiveram filhos, isso muitas vezes. Mas nenhum dos novos filhos sabia fazer o que Tarucacha havia ensinado aos primeiros, vivendo como os bichos: andando de quatro patas e devorando uns aos outros.

Foi então que Tarucacha percebeu seu erro: tinha esquecido, talvez pelo cansaço, de colocar uma língua na boca dos homens, que sem poder falar, não conseguiam ensinar seus próprios filhos as coisas que tinham aprendido com Tarucacha. Este, depois de consertar seu erro, teve de reunir todos os seus filhos e ensinar tudo outra vez.

É por isso que, para que os homens jamais voltem a agir como os bichos, falar e andar são as primeiras coisas que  aprendem as crianças. Mas o mais importante: é justamente porque antes não tínhamos língua que hoje podemos saber que isso um dia aconteceu”.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

As últimas palavras


Você provavelmente chegou a este texto através da indicação de algum amigo ou colega seu. Está só no cômodo, de frente para a tela do computador e, mais por falta de alternativa do que por uma opção própria, cultivando o desânimo. Nada mais trivial. Portanto, não se culpe: quem poderia adivinhar que logo hoje seria o dia da sua morte?

O tédio aumenta. Mesmo com boa vontade é impossível não pensar no clichê das palavras lidas. De fato, isto se parece com mais um daquelas obras que avisam sobre a morte do espectador, como um conto de mistério ou um filme de terror sem criatividade. Isso tudo é ficção barata.

No entanto, você não consegue esconder um leve nervosismo; e se isso não for ficção? Não chega a desviar a vista da tela, mas com a visão periférica procura por outras pessoas. A solidão do cômodo parece muito mais forte agora. E será que você não escuta algum barulho estranho?

Sim, um barulho... como um sussurro de algo rasgando o ar.

Você não tem tempo de se virar: a dor – aguda, cruel – o impede de realizar qualquer movimento. O gosto de sangue sobe à boca e você sabe que é real; o que jamais saberá é quem (ou o que) tirou sua vida. No entanto, antes de tudo ficar totalmente escuro, você não consegue deixar de escapar um último sorriso. O sorriso irônico de quem percebe de que as últimas palavras que vêm à sua mente não são suas, mas sim de uma simples ficção barata.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Oráculo



Por duas vezes Giorgos Dimitriou pôde ver sua futura morte. A primeira delas ocorreu após ser recém-admitido em uma orgulhosa escola teosófica de tradição grega devido ao seu incontestável talento para as artes oraculares. Tal visão teria sido motivada por uma arrogância e imaturidade comuns ao temperamento juvenil, e causou um impacto igualmente condizente com tal gênio e com a natureza da informação.

Por muitos anos Dimitriou esquivou-se da lembrança da visão, até que certa melancolia companheira da meia-idade o levou a novamente encarar sua morte. Mas, surpreendentemente, a forma do seu fim havia assumido uma aparência completamente diversa da que possuíra anos atrás.

A segunda visão produziu-lhe um impacto ainda maior. Sabia que o caminho de cada homem havia sido escrito pelos deuses no Livro do Destino desde os tempos imemoriais. Como poderia, então, sua morte ter mudado? Aquela dúvida abalou as crenças de Dimitriou, obrigando-o a um enorme esforço reflexivo imerso na completa reclusão. Até que encontrou a resposta.

Seu Destino não havia mudado, mas sim o próprio Demetriou. As palavras no Livro eram as mesmas; sua leitura delas, outra, uma vez que ele mesmo era outra pessoa: mais velho, mais maduro, mais humilde.

À reflexão seguiu-se a especulação: após alguns anos, Dimitriou sugeriu aos seus colegas da escola que o Livro do Destino poderia ser, afinal, um texto de ficção: seus propósitos seriam inúmeros, menos se referir diretamente à vida dos homens. Escandalizados, seus pares gritaram que se assim o fosse, os deuses seriam mentirosos em vez de deuses. Dimitriou respondeu que tratava do Livro e não dos deuses, mas não foi ouvido: expulsaram-no por heresia.

Depois disso, Dimitriou se mudou para a praia onde permaneceu até morrer, alguns anos mais tarde. A causa foi câncer de pulmão, pois fumava demais e sempre tivera pavor de médicos.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Deus Ex Machina


Jason Morgue, 23, foi encontrado morto na sala de estar de seu apartamento, deitado de barriga para baixo, com a metade inferior do corpo completamente esmagada. À sua frente se encontrava a tv e um console de videogame ligados; a tela exibia a mensagem de game over.

Outros elementos estranhos estavam ligados à surpreendente morte: todas as portas e janelas se encontravam trancadas por dentro, sem sinais de arrombamento; nenhum pertence do cadáver havia sido levado; Jason, estudante universitário “gente boa”, não possuía nenhum inimigo que poderia desejar sua morte.

O mistério ganhou grande repercussão por ser insolucionável. Alguém sugeriu a velha saída do crime-com-portas-trancadas-por-dentro: o assassino teria se escondido dentro do apartamento e esperado o lugar se encher de curiosos para escapar misturado à multidão. Contudo, como ele poderia esmagar a parte inferior de Jason e sair com tal arma do crime sem ser notado? Assim, o assassinato de Jason ficou irresolvido por uma centena de anos, até ser solucionado pelo próprio assassino.

Este se chamava Peter Hoffmann, o inventor da máquina do tempo, e escritor amador de literatura policial, e que, por recolher material para suas obras de recortes jornalísticos, havia se deparado com o caso de Jason. Aconteceu que Hoffmann, no primeiro teste de sua invenção, deslocou-se no tempo mas não no espaço, e seu laboratório estava localizado onde anteriormente era o apartamento de Jason. De modo que a máquina do tempo, um trambolho enorme, “apareceu” bem em cima do jovem que jogava videogame deitado no chão, esmagando metade do seu corpo.

Hoffmann, assustado por ter sido ele o autor do famoso crime insolucionável, teve um ataque de histeria, imediatamente retornando para sua época somente para destruir sua criação e abandonar a literatura policial.

O que foi realmente uma lástima, pois até que ele escrevia bem.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Oferenda



Aquele era um clube noturno novo, cujos segredos eu ainda descobria. Naquela ocasião, a bebida exagerada havia me enchido de ousadia. Culpo essa situação pela minha atitude ao ver o sujeito falando com a garota que parecia estar na fronteira entre o pânico e a entrega.

Abordei o homem com um empurrão, perguntando se não via que incomodava a moça. Surpreendentemente, ele não reagiu; apenas levantou as mãos, desaparecendo com um sorriso cínico no intervalo entre a sombra e a luz. A moça, que deveria estar realmente assustada, havia fugido.

Naquela noite tive um pesadelo. Uma voz horrenda exigia, num sussurro, sua oferenda. Vi uma garota, cujo rosto era uma sombra, ser guiada por formas humanas deformadas até um altar, onde foi torturada rapidamente até a morte. Acordei com um calafrio que por horas não me deixou dormir.

A partir daí, todos os dias o pesadelo retornava, ficando cada vez pior. A voz passou de um sussurro para gritos. As formas sempre traziam uma moça diferente, e as torturas ficavam cada vez mais brutais e duravam horas. A sombra no rosto permanecia, mas no fim, quando ela finalmente morria, seu rosto se virava para mim revelando aquele sorriso cínico que já havia visto antes.

Tudo foi inútil para parar os pesadelos. Até que um dia, quando me vi à beira da ruína, descobri o que tinha de fazer.

Levei uma amiga ao clube; achá-lo entre as pessoas foi abominavelmente fácil. Apresentei-o a ela como um velho colega da faculdade; ele sorria como se tivéssemos combinado tudo antes. Disse que ia comprar uma bebida e fugi; os sonhos acabaram.

Desde então, não tive mais notícias dessa amiga. Evito conhecidos em comum, com medo do que possam me dizer. Sei o que fiz com ela, para o que a entreguei. Mas; mas...

sábado, 21 de janeiro de 2012

Curupira



Curupira atualmente trabalharia pro IBAMA, brincou certa vez um amigo meu que costumava bancar o folclorista espirituoso. Mal sabia ele que tal afirmação escarnecedora não poderia estar mais longe da natureza do Curupira. Ele não é um protetor das florestas. É verdade que seu rastro confunde os caçadores, mas isso não é proposital, apenas consequência das bebedeiras constantes que toma devido a seu temperamento.

Conheci-a há um tempo, a criatura tristonha. Não tinha os cabelos de fogo mais do que qualquer ruivo normal, mas os pés, de fato, eram voltados para trás. Era essa peculiaridade, aliás, o principal motivo da sua desgraça, pois tudo aquilo que o Curupira almejava era afastado de si justamente no momento em que tentava se aproximar do objeto desejado.

Quando Curupira me contou isso, tentei argumentar que ao menos ele sempre se afastaria daquilo que queria evitar, mas esse pensamento não melhorou seu humor. Em resposta baixou os olhos e sorriu tristemente:

- Pode ser, mas também não sei o destino da minha fuga, que no fim das contas pode ser algo ainda pior.

Se a Mãe Natureza deu alguma função ao Curupira, ele não faz ideia, e zomba que deve ser de “bobo da corte”: afinal, como pode uma criatura mitológica ser tal sinônimo da incerteza, se não por brincadeira?

Depois de pensar um tempo sobre a pergunta, concluí que a Mãe talvez soubesse o que estava fazendo. Pois me parece que Curupira é a única criatura antiga que ainda tem lugar no nosso tempo, tão duvidoso quanto pés virados para trás.

Minha conclusão trouxe certo ânimo e resolvi dar de presente ao Curupira uma reprodução do Angelus Novus, de Klee. Vi em seus olhos que havia me compreendido, mas que aquilo não mudava muita coisa. Baixou-os e agradeceu com seu sorriso triste.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Sertão do aço


O menino viu o grupo dobrando a estrada, longe. Correu para a porta da casa de barro, olhou para o pai lá dentro e disse:

- Cangaço.

O homem levantou abruptamente e fez sinal para a mulher permanecer sentada. Seu olhar dizia que resolveria tudo. Em seguida caminhou até a estrada, e esperou o grupo de cangaceiros de aço chegar.

Eram poucos, mas isso não aliviou a tensão do homem; esse tipo de gente era sempre perigoso, estando em bando ou sozinhos. Vários deles tinham implantes mecânicos, principalmente braços e pernas. O homem que à frente acenou com a mão e o grupo parou; tinha esferas vermelhas no lugar dos olhos e um implante substituindo o maxilar, dando-lhe o aspecto de uma caveira de metal.

- Precisamos de um lugar pra passar a noite, disse.

- Temos um lugar, mas não mais do que isso, respondeu o homem. Falta tudo o mais pra nós.

- Não precisamos mais que isso, além do silêncio. Temos macacos no rastro.

O homem acenou, indicando que o seguissem. Colocou-os num estábulo velho, há muito tempo vazio. Depois foi para casa, trancando sua família lá dentro, ordenando silêncio e rezando para que ele permanecesse em todo canto.

O grupo partiu ao amanhecer. O homem agradeceu, não a eles, mas à sorte deles terem deixado apenas as mesmas desgraças que encontraram. A mulher, contudo, não parecia tão satisfeita, e olhando o grupo com desprezo comentou:

- Olhe pra’quilo. Aquelas coisas no corpo, na cara, aberrações. Aquilo ali já não é mais gente.

O homem olhou para o grupo, para a esposa e para a casa, tristemente. Talvez o bando não fosse mais gente mesmo; mas isso ao menos significava que alguma vez o fora. E eles, vivendo naquela miséria, esquecidos por Deus, o que eles eram?

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012