quarta-feira, 30 de junho de 2010

Só mais outro romance pós-humano

Eles se conheceram num chat do cyberespaço. Em pouco tempo configurou-se um desses relacionamentos virtuais tão comuns: apesar de residirem em locais distantes um do outro se encontravam todos os dias, combinavam em muitas coisas, sentiram-se apaixonados e decidiram, finalmente, namorar. Nada fora do comum e ao mesmo tempo tão singular, casual e destinado, corriqueiro e especial; enfim.

A distancia física era contornada graças aos avanços do avatar neural. Nenhum dos dois era inocente, e bem sabiam que os corpos esculturais que portavam e que sentiam não correspondiam aos originais que se conectavam à rede. E apesar de toda a tecnologia e precisão sensorial, concluíram que seria melhor a realidade, mesmo com suas imperfeições.

E foi com grande surpresa que, ao se encontrarem pessoalmente, descobriram que ela era na verdade ele e que ele era na verdade ela. Contudo, apesar de toda a decepção inicial, raciocinaram que não havia motivos reais para se separarem. Há quem diga até que vão se casar, mas cada um usando seu próprio computador, em sua própria cidade.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O cavalo

Esses dias eu voltava pra casa quando me deparei com um cavalo comendo o lixo do meu prédio. Era um cavalinho muito magro, do pelo marrom cheio de falhas, a crina grande caindo triste pro lado. Fiquei com pena daquele pobre animal e perguntei se ele não queria subir para comer algo decente. Ele me olhou com os olhos marejados e aceitou de pronto meu convite.

Lá em cima esquentei o que sobrou do almoço e dei pro cavalinho, que comeu vorazmente. Depois de satisfeito, contou-me sua tragédia: vinha de uma fazenda do interior, onde vivia com sua família. Mas quando uma seca levou tudo, só restou ao cavalinho uma promessa de trabalho na cidade grande. Acontece que o tal trabalho era o de carregar uma carroça, e todo dia ele era espancado pelo carroceiro para que trabalhasse melhor. Cansado de apanhar, decidiu largar o emprego, e agora não tinha nem o que comer, nem como voltar pra o interior.

Comovido, dei-lhe dinheiro para que comprasse uma passagem de volta. O cavalinho, chorando, abençoou-me, e foi para a rodoviária, comprar sua tão sonhada passagem.

Dias depois, estava indo comprar pão quando vi o mesmo cavalinho, sentado no chão com os olhos vermelhos, uma garrafa de cachaça do lado. Nossos olhares se cruzaram rapidamente, mas ambos, condescendentes um com o outro, fingimos não nos ver.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A escada

Certo dia, lá no início dos tempos, Deus sentiu grande curiosidade e quis ver o que se passava com Sua criação lá na Terra. Para poder descer dos Céus ele começou a construir uma comprida escada de madeira, o material mais resistente – e, portanto, mais seguro - que se conhecia naquele tempo, a fim de poder ver melhor o que Seus filhos andavam aprontando.

Mas quando os homens viram aquela imensa escada e perceberam que era o Senhor que estava vindo para fiscalizar o mundo, ficaram revoltados – e com razão, já que não é só porque se é pai que os filhos devem aceitar a visita de quem nunca dá notícias, nem demonstra carinho, nem ajuda com as dificuldades da vida. Por isso esperaram a escada ficar o suficientemente próxima do chão para tocarem fogo nela e estragar os planos de Deus.

Este, claro, ficou divinamente irado. E para que nunca mais os homens se juntassem para atrapalhar Seus planos, deu uma língua diferente para cada um dos envolvidos, de modo que eles jamais se entendessem novamente.

O que contam por aí, de fato, é outra coisa. Sem conseguirem se entender, os homens acabaram deixando essa coisa de Torre vigorar. E o caso perdido da Escada de Babel hoje em dia só serve como mais um exemplo de como a história é manipulada pela força dominante.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A solução de quem não quer perder aquilo que já tem

O rapaz leu Memórias Póstumas de Brás Cubas, do Machado de Assis e saiu repetindo, maravilhado: “ao vencedor, as batatas!” Em seguida, leu Quincas Borba para aprofundar-se no Humanitismo.

Decidiu cursar filosofia. Leu tudo sobre o assunto competição. Preparou resenhas, escreveu artigos científicos, apresentou palestras, tornou-se um especialista na área. Conheceu Diógenes, o Cão, largou a faculdade e foi morar em um barril.

Também gostava muito daquele verso do Los Hermanos: “Eu que já não quero mais ser um vencedor”. Então ele teve a epifania: os males da nossa sociedade vinham da competição entre os homens.

Resolveu criar uma religião que desprezasse qualquer contenda. Seria a redenção do homem pelo homem. Foi tachado de comunista, de perdedor, de arrogante.

Hoje ele luta para que sua religião ganhe notoriedade e a humanidade conheça a verdadeira felicidade através de seus ensinamentos, mas não tem dinheiro para publicar seu livro, e seus amigos querem assistir à Copa.

Do mano Igor, autobiográfico, talvez?

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Olhos

A primeira vez que a viu ainda era pequena: deitada em sua cama tentando dormir, ela viu a mulher aparecer na porta do quarto, metade do corpo coberto pela parede, muito branca e mirando-a fixamente sem olhos. A menina fechou os olhos e rezou para que aquela mulher sumisse, mas ela continuava lá quando a menina voltava a olhar. Como isso se repetia, seus pais levaram-na ao médico, que receitou remédios para fazer desaparecer a assustadora mulher. E por um longo tempo ela se foi.

Em sua adolescência, e já sem remédios há algum tempo, a mulher apareceu novamente, agora a meio caminho entre a porta e a cama, ainda com dois buracos na face, ainda fitando-a. Apavorada, a jovem voltou ao médico, que novamente receitou-lhe medicamentos. Após um tempo de desespero, mais uma vez a mulher sem olhos desaparecia sem deixar vestígios.

Agora casada, a mulher voltara, dessa vez com o rosto quase colado no dela, os buracos parecendo sugar-lhe a alma. Mas agora os remédios não tiveram efeito algum.

Foi numa noite em que dormia sozinha que chegou ao limite. Alucinada, arrancou os próprios olhos para nunca mais ter de ver aquela coisa terrível outra vez.

O marido ainda chegou a tempo para salvá-la da hemorragia. Mas seus olhos extraídos nunca foram encontrados.