quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
O outro lado
Saci
Esses dias me lembrei da vez em que conheci um saci.
Isso foi na adolescência, quando costumava viajar pelo interior com meus pais. Em um cidadezinha, cujo nome não recordo, notei que um ponto de referência constante era a “casa do saci”. Curioso, perguntei o porquê do apelido; os matutos riram e disseram não era apelido, que ali tinha saci mesmo.
Numa manhã de ócio saí para ver o tal Saci. No local indicado encontrei uma casa tipicamente interiorana, emendada nas outras, com uma varandinha na frente, onde estava sentado numa cadeira de balanço um senhor negro um tanto velho, fumando um cachimbo malcheiroso. Trazia um boné vermelho na cabeça, e, pela falta de volume do lado esquerdo da calça, percebia-se uma perna faltando. Parecia de muito mau humor.
Consegui conversar um tempo com ele. Disse que era mesmo um saci, desses moleques e traquinas, mas que depois de perder sua função no mundo teve de vir pra cidade. Perguntei, inocente, se era porque ninguém acreditava mais no Saci. O velho achou graça na pergunta, respondendo ironicamente:
- Pouco importa se vocês acreditam ou não na gente; a gente tá aqui somente pra fazer desordem e bagunça. Acontece que vocês arrumaram formas muito mais eficientes pra tornar o mundo mais caótico; e, o pior, de forma bem ordeira. Não vi mais razão continuar dando nó em rabo de cavalo e arrumei um emprego, como todo mundo. Hoje sou aposentado pelo INSS.
Foi uma visita realmente frustrante, mas ainda assim pedi para tirar uma foto minha com o saci. Em pouco tempo esqueci completamente aquele episódio; tanto que, quando olhava os antigos álbuns da família, demorei bastante tempo para me lembrar por que eu tinha uma foto com aquele idoso militante do MST.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
Golem
Não existe conhecimento no mundo que possa salvar o homem da perdição.
Chamo-me David Bolzman, e há algum tempo descobri que tenho um tumor inoperável no cérebro; meu tempo de vida, disseram-me, é infelizmente curto.
A maioria das pessoas cairia imediatamente num estado de luto por si mesmo; eu, contudo, sempre fui muito pragmático, e decidi logo que não poderia perder tempo lamentando minha partida se eu ainda quisesse permanecer neste mundo.
Dediquei-me, portanto, exclusivamente ao meu estudo da Cabala, que antes me tomava apenas o tempo do divertimento. Acreditava que poderia descobrir ali a chave para minha salvação, e de fato encontrei: a receita exata para a criação de um Golem.
A ideia era simples: ao invés de animar um corpo literalmente de barro, eu usaria a fórmula para me transformar em um Golem, afinal, todos nós somos, em princípio, corpos de barro. Dessa forma, eu poderia manter minha matéria animada para sempre, enquanto minha alma manteria o controle de tudo.
Assim, preparei ritualmente uma placa de argila com a palavra Emet (que quer dizer “verdade” na língua sagrada) gravada, colocando-a debaixo da minha língua; e essa foi minha perdição.
Pois ao invés de imortalizar meu corpo, o ritual levou-me à total consciência de tudo; tornei-me, como Deus, conhecedor de todos os mistérios da Criação. Contudo, saber de tudo é também ser tudo; e, vi-me então transportado para uma terrível viagem por diversos estados de consciência, o que, à distância, só pôde ser encarado por meus familiares como loucura.
Mas o divino Caos (e entendo agora dos ouroboristas), por sorte, me trouxe novamente ao meu estado original, embora eu saiba que isso dure pouco tempo. Tenho, portanto, apenas alguns instantes para escrever minha história, antes de me unir ao Criador no pesadelo que é a onisciência.
domingo, 4 de dezembro de 2011
Visão do Paraíso
A obra do meu falecido amigo Ricardo Narciso tem sido muito comentada atualmente, gerando uma infinidade de opiniões sobre seus textos. Alguns o consideram violentamente progressista, ou corajosamente reacionário, ou um apolítico irônico. É igualmente metafísico e materialista; experimental e conservador; um elevado esteta e um chulo inconsequente.
“Contraditório” é a leitmotiv dos detratores de Narciso. Para eles, tal defeito se deve à incapacidade do artista em lidar com a imensa variedade de sua própria obra. Dessa forma, teríamos várias aberrações, como o “clássico” ensaio sobre a relação da diáspora palestina e as comédias nonsense.
Há, contudo, aqueles que preferem “contradição”: o que Narciso realmente faz é um ataque constante à própria obra para tratar da impossibilidade atual de se chegar a uma Verdade. A contradição seria, portanto, não um defeito, mas sim o elemento formal que rege toda a obra do autor.
Tenho minha própria interpretação, biográfica, por assim dizer, baseada numa história interessante que Narciso me contou. Disse que caminhava aleatoriamente quando, sem querer, olhou para uma pessoa que vinha em sua direção e percebeu que era um anjo; entendeu isso quando, ao cruzar olhares com esse ser, pôde ter, por um milésimo de segundo, uma visão do Paraíso refletida em seus olhos.
Creio que esta seja a verdadeira chave para a sua obra. Embora ele nada tenha me dito, acredito que tal visão modificou meu amigo para sempre. Tendo consciência de que seria impossível representar o que vira, Narciso dedicou sua obra pós-encontro a ser um monumento da ruína. Atacando a tudo e, sobretudo, a si mesma, a obra de Narciso procura ser um espelho ao inverso da perfeição e ordem do Paraíso divino; e assim, o que meu amigo tenta dizer é que algo sublime também (ou só) pode ser humanamente construído por meio da destruição.
sexta-feira, 19 de agosto de 2011
Um ser infinito
Para Poli
Há no zoológico local um ser fascinante, cuja espécie é desconhecida por todos, e que, acredito, só existe aqui. Bem, provavelmente existem outros iguais no mundo, mas “capturado” acho que este é o único, uma vez nunca havia ouvido falar dele. Contudo, também é possível que seus semelhantes estejam por todo lugar, irreconhecidos ou apagados, devido à sua natureza peculiar.
Este ser (pensei em dizer “criatura”, mas essa palavra contém uma carga pejorativa que contaminaria qualquer visão honesta sobre ele), aparentemente, não possui uma forma “fixa”. A qualquer momento ele pode se transmutar em qualquer outro animal, dos mais comuns aos mais fantásticos, com igual facilidade. Algumas vezes ele é um imenso leão dourado, e espanta as pessoas pela sua imponência; outras vezes é um cachorrinho vira-lata, daqueles que se encolhem num canto apenas esperando um afago que nunca aparece; já o vi na forma de um hipogrifo ou coisa ainda mais complexa, e todo mundo recuava sem entender aquilo; um vez foi um cordeiro, e tenho certeza que morreria naquele momento para salvar toda a humanidade de si mesma.
As pessoas passam, olham, perguntam, arregalam os olhos ou os levam para os lados, mas no final sempre ignoram. Acho que se trata de mais um dos sintomas da falta de interesse que as pessoas nutrem por tudo aquilo que não é óbvio.
De modo que passo os dias ao lado desse ser maravilhoso, imaginando uma forma de livrá-lo dessa prisão. Pois acredito que assim que estiver longe dessas grades ele poderá se abrir em toda a beleza da infinitude de suas possibilidades.
quarta-feira, 17 de agosto de 2011
Alquimista
Apesar dos numerosos estudos praticados até hoje, a arte da alquimia atingiu seu ápice uma única vez na história, na Espanha medieval. A trajetória dessa ascensão é revelada através de pequenas notas cifradas, que constituem o registro de toda a aprendizagem do sábio Álvaro Lúlio.
Aqueles capazes de ler as notas se admiram com um jovem autodidata perspicaz o bastante para desvendar os maiores segredos da alquimia. Sabe-se pouco, contudo, da vida do alquimista, embora se possa pescar um pedaço aqui e ali em seus textos: por exemplo, que ele nasceu e morreu em Maiorca.
A mistura cristã, judia e árabe característica da ilha foi essencial no desenvolvimento dos estudos de Lúlio: foi a partir de elementos dessas três culturas que ele pôde desvendar o princípio essencial da Arte: cada elemento ou processo do trabalho alquímico representa uma idéia; a partir de sua manipulação é possível concretizar um conceito abstrato.
Assim, ensina-nos Lúlio: o mercúrio significa essência, o enxofre poder, o ouro sabedoria; derreter quer dizer conhecimento, ferver purificação; e assim por diante. Após anos de pesquisa foi possível tamanho domínio desse princípio por parte do sábio espanhol, que ele foi capaz de chegar ao conceito do Absoluto e assim criar um deus vivo.
É nesse ponto que os textos de Lúlio são interrompidos, e nada mais se sabe dele. Sua morte é dada como certa, em 1374. Várias são as teorias que explicam seu desaparecimento; a minha, embora um tanto amarga, tem o mérito de ser original. Acredito que Lúlio foi morto pelo deus que criou. Este, movido pelo orgulho natural da sua raça, não pôde suportar a humilhação da sua gênese: sua mente insondável foi incapaz de aceitar que ela – divina e portanto perfeita – fosse fruto daquilo que há de mais contingente e falho em toda a criação.
quinta-feira, 4 de agosto de 2011
Cavalinhos Gregos
A primeira referência que se tem notícia sobre os cavalinhos gregos está numa ânfora encontrada na região do Épiro, e datada do séc. VIII a.C. Nela podemos ver um grupo das pequenas criaturas correndo numa linha ao longo do objeto, como se andassem em círculos.
Na peça anônima Hino Homérico a Hermes, cuja criação remonta aos séculos VII ou VI a.C., os cavalinhos são citados como servos de Hermes, ajudando o deus a entregar as mensagens do Olimpo aos mortais. Dois séculos mais tarde, seriam escritos estranhos versos elegíacos a Hipnos que mencionam os curiosos animais como filhos ou mascotes do deus do sono, e cuja função seria a de fornecer aos homens os mais variados tipos de sonhos de curta duração.
A bibliografia não é muito clara nesse ponto, mas aparentemente o papel que os cavalinhos gregos possuem no mito de Hipnos estaria na verdade relacionado ao mito de Calíope. A diferença, obviamente, está no resultado do contato entre os cavalinhos e os homens.
As próximas referências mais concretas acerca dos cavalinhos gregos estão em alguns bestiários medievais mais desconhecidos, como os de Palencia (1287), de Würzburg (1403) e de Lullus (1357). Em todos esses textos, os pequenos seres fantásticos são associados à inspiração demoníaca e à destruição da fé cristã.
O ceticismo que cresceria após o Renascimento escamoteou as alusões aos cavalinhos. Mas a ciência, que tanto destrói mitos, por vezes também ajuda, como se brincasse, a resgatá-los. Pois há apenas alguns meses atrás, finalmente um trio de cientistas pôde capturar um espécime de cavalinhos gregos. Infelizmente não foi possível manter o animal vivo, desfazendo-se ao primeiro toque numa infinidade de sentidos. Os cientistas, contudo, não ficaram desapontados; pelo contrário, dois deles estão com exposições montadas e o terceiro está prestes a lançar o seu primeiro romance.
sábado, 16 de julho de 2011
Sísifo
Minha esposa e eu estamos muito doentes. Ela está morrendo; eu, talvez já esteja morto.
Ela tem leucemia, num estágio terminal. Os médicos ainda aparecem aqui todos os dias, falam coisas incompreensíveis. Eu já quase não escuto mais. Ela, tenho certeza que não escuta há muito tempo.
Todos os dias eu me sento ao lado dela e vejo-a sofrer. Todos os dias alguém lhe dá drogas que parecem não fazer qualquer efeito; tentam fazê-la comer somente para colocar tudo para fora pouco depois; ela é invadida por mãos geladas, que ao invés de dignidade só lhe trazem humilhação; ela pede para se ver no espelho, como uma tortura, e chora pelo que vê.
Todos os dias ela me pede para matá-la.
Eu sempre nego. Digo que é impossível, que a amo, que isso é injusto, que não sou um assassino, que isso seria suicídio, que não posso perdê-la. Eu choro, ando pelo quarto, aperto minhas mãos até sangrar.
Ela só me olha tristemente e diz eu sei.
No fim eu sempre atendo seu pedido. Uso um travesseiro, desligo botões, aplico doses gigantescas de drogas que roubo do hospital. Mas no outro dia eu acordo sentado ao seu lado e vivemos o sofrimento novamente.
Antes eu achava que era só loucura, que eu vivia em minha mente o que eu não tinha coragem de fazer na realidade. Mas agora eu já não sei; tudo é tão real, toda a dor, as lágrimas, o último suspiro diário de minha esposa.
Todos os dias eu olho para trás e procuro por meus pecados. Por mais que eu tente fazer dos meus erros abominações, tenho por fim que admitir: sou um bom homem. Mas quando anoitece e eu tenho que matar minha esposa novamente, sempre chego à conclusão de que estou no inferno.
quarta-feira, 6 de julho de 2011
O nazista e Baba Yaga
Enrich Weiss desertou durante o inverno de 43, embrenhando-se, à noite, na terrível floresta russa. Seu mal não era a vergonha da covardia (sabia que não era um covarde), mas sim a incredulidade. Como era possível aquele derrota? Acaso não era ele – e todos os alemães – um ariano, raça superior à dos eslavos em todos os aspectos? Então o que explicava a ruína final, que lhe parecia agora inevitável?
Seus pensamentos esbarraram na estranha cabana. A princípio ficou temeroso, pois contava apenas com uma pequena faca. Mas, observando melhor o estado miserável da habitação, concluiu que esta só poderia estar abandonada.
Surpreendeu-se ao encontrar lá dentro, sozinha, uma velha vestida em trapos. Ela, contudo, como se o esperasse, não esboçou reação ao vê-lo, deixando em Joseph uma inquietação sombria.
- Sou Enrich Weiss – sussurou.
- Sou Baba Yaga, a grande bruxa dessas imensas terras. Vejo em ti uma busca. Posso dar-te o que desejas; deves, contudo, vencer uma prova. Se fracassares, devorarei tua carne.
Enrich não soube se aquilo era uma piada ou uma armadilha; porém, algo na velha o que fez perceber que era verdade. Vendo uma oportunidade para livrar-se do que o afligia, disse:
- Desejo somente a verdade: a prova absoluta de que sou um homem superior.
A velha riu malignamente, revelando dentes pontiagudos:
- Terás a prova, a recompensa e o castigo de uma vez: basta que tires minha vida. Se fores capaz, tua superioridade estará provada para sempre; se falhares, terás a morte.
Enrich parou um instante, observando o sorriso cruel de Baba Yaga. Por fim, baixou a cabeça e abandonou a cabana, deixando a velha atrás de si. Antes que a porta se fechasse, imaginou tê-la ouvido rosnar-lhe palavras de desprezo. Não se virou, contudo. Restringiu-se à segurança da imaginação, como sempre fez.
quarta-feira, 29 de junho de 2011
Herdeiros de Lycaon
A licantropia é um fato. Porém, ao contrário do que se pensa, não se trata do velho mito do homem que se transforma em lobo; muito menos da neurose que faz o homem pensar ter sido transformado em animal. Isso seria ótimo, pois ao menos teríamos uma ideia do que estamos enfrentando.
Digo isso porque a licantropia real é ainda um mistério; sabe-se que ela existe, seus efeitos, e nada mais. É assustador pensar que algo tão macabro e comum esteja escondido das pessoas; ou que seja algo tão evidente que as pessoas se recusam a se dar conta.
A licantropia real (que curiosamente só aparece no início do século XX) é a doença que transforma homens em animais, de qualquer tipo, desde que seja mordido pelo bicho. Contudo, ao contrário do mito e da neurose, a transformação é real e irreversível. Mas o mais surpreendente é que o inverso também é válido: um animal mordido por uma pessoa infectada consequentemente se transforma em ser humano.
O maior motivo para a invisibilidade da licantropia são suas próprias vítimas: os párias, homens ou animais. Mendigos, menores abandonados, animais de rua, pragas (me pergunto se Kafka conhecia a doença); esses são nossos licantropos, que se metamorfoseiam de uns para os outros, até acabar sacrificados, anonimamente, como viveram.
A licantropia não é uma alegoria. Antes o fosse, pois assim demonstraria que pelo menos alguém reflete sobre ela – o que abrandaria um pouco minha solidão. Pois não posso negar que ao menos eu resolvi encarar o problema – o qual, na verdade, considero menos uma doença do que um sintoma. Um sintoma, talvez, desses nossos tempos, em que mesmo as mais profundas certezas, tanto as nossas quanto as dos outros, são impiedosamente arruinadas, em favor de uma miséria que não deveria caber a ninguém.
sexta-feira, 17 de junho de 2011
Messias
Essa parece uma história de mau gosto, mas eu só posso dizer que é real. Um dia eu voltava do trabalho (sou carpinteiro, que ironia), quando fui interpelado por um cadeirante exclamando histericamente que eu era o messias. Sou ateu, e no início achei aquilo até engraçado, mas o homem estava tão convicto que abalou meu ceticismo. (Acho que no fim a credulidade depende mais da fé de quem fala do que da de quem ouve.)
De modo que falei, timidamente, “levanta e anda” e, vejam só, o sujeito realmente levantou e andou, me abraçando e chorando que aquilo era um milagre. Achei que fosse um golpe, mas ele me forçou a ir até um hospital público, onde curei uma grande quantidade de doentes e até multipliquei alimentos, pois estavam em falta.
A partir daí fui amado e odiado por alguns. Meus “discípulos” me seguiam pra onde fosse e pediam que eu lhes guiasse. Eu dizia “ como pessoal, se eu não sei o que fazer com a minha própria vida?” e eles entendiam e repetiam “sim Mestre, devemos ser bons uns com os outros!”. Meus “inimigos” diziam “que absurdo, um Jesus pardo!”, e eu dizia “Jesus? Nem eu acredito em Jesus!”.
Mas um dia os milagres pararam sozinhos e o povo parou de me importunar. Meus antigos seguidores (e detratores, provavelmente) transferiram sua fé para o Alacrenil, uns comprimidos vendidos na TV.
Por um tempo me perguntei qual a razão disso tudo. Não recuperei uma fé que nunca tive, nem fomentei uma fé que sempre tiveram. Tampouco ensinei algo relevante a alguém (e o que eu poderia ensinar, além de carpintaria?). Pode ser que no futuro a física, a sociologia ou a história expliquem meu caso. Mas eu, no presente, embora tenha vivido isso, não consigo encontrar sentido algum.
quarta-feira, 8 de junho de 2011
Sonho
O ser humano é mesmo muito engraçado; sempre imaginando significados para as coisas. Lembro-me que há muito tempo ele me fez um deus; deu-me uma família e uma missão. Chamava-nos de Oneiros, e, na verdade, todos os membros dessa ordem eram tentativas de dar conta do que sou.
Posteriormente, quando ficou muito senhor de si, me fez parte dele mesmo. Reduziu-me àquilo que ele não podia controlar, àquilo que pouco podia entender, mas ainda assim a algo que era ele mesmo. Apesar de minha eterna rebeldia eu podia ser explicado.
Hoje em dia entrou na moda (novamente) a visão mística de mim. Reconhecendo que sou mais do que ele, o ser humano, no entanto, ainda pensa ser capaz de encontrar meu sentido, inclusive achando que eu posso revelar o que está por vir.
Há, evidentemente, aqueles que não fazem ideia do que sou: lembro-me do caso daquele homem que sonhava um burro, que sonhava outro homem, que por sua vez nada sonhava; e nenhum deles sabia o que era ou o que não era.
Claro que, embora trágica, a história desses três é tão engraçada quanto aqueles que sabem tudo sobre mim. Isso justamente porque, seja na ignorância ou na sabedoria, nenhum deles sabe nada. Afinal, não sou nem alguém que age, nem algo que acontece; sou simplesmente aquilo que passa e que junta, assim como o tempo.
Assim, se meus trágicos amigos soubessem disso, veriam que não existe nem sonhador nem sonhado, mas apenas o sonho, ligando um ao outro e a todos os outros que julgam me saber. E se todos soubessem disso, veriam que não existe nenhum significado em mim, assim como não há nenhum na vida. Pois isso a que chamam de vida não passa da continuação de um sonho, e que será outro sonho, eternamente.
domingo, 29 de maio de 2011
Jogo
Eu e meu amigo Igor iniciamos há algum tempo uma espécie de jogo, com o objetivo de produzir textos para o Cavalinhos: um de nós dois começaria um conto, que seria enviado ao outro para que desse continuação, retornando em seguida ao primeiro e assim sucessivamente, até que tivéssemos um texto completo, sendo a intervenção no texto alheio permitida.
Em pouco tempo terminamos um conto, bastante vulgar (misturava, salvo engano, mitologia, horror e crítica social). Mas antes que concordássemos por uma versão definitiva, um de nós (não lembro quem) resolveu incluir, jocosamente (acredito), um comentário do narrador que resumia, criticamente, o próprio conto. Ato contínuo, o outro incluiu ao comentário uma comparação com outro autor, provavelmente Lovecraft. A resposta veio em forma de uma alteração do texto que o afastava do autor comparado, resultando numa segunda crítica por parte do narrador, reinterpretando o conto.
A partir daí seguiram-se uma série de alterações no conto, que incluíam mudanças no enredo, comparações com outros autores, comentários metaficcionais, sobre os outros autores, referências a textos anteriores e futuros do Cavalinhos, bem como a textos não literários e/ou a acontecimentos que iluminavam (ou não) o conto, e explicações sobre o funcionamento do jogo, que alertavam para a necessidade ou incoerência de uma ou outra alteração.
Não fosse isso o bastante para tornar nosso projeto inicial uma imensa confusão, somou-se o fato de que cada um de nós passou a enviar diversas versões do texto para o outro, muitas vezes copiando seu estilo, ou sem nenhuma alteração, de modo a parecer, por exemplo, que eu havia escrito algo que na verdade havia sido escrito pelo meu amigo. Assim, por mais absurdo que possa parecer, esta é uma das versões de nosso conto; e já não sei dizer se quem a escreve sou eu ou Igor.
quinta-feira, 19 de maio de 2011
Ouroboros
Em 1672 foi publicada a obra do humanista Giovanni Feliciano, De Urobori Interpretatio, na qual o sábio se dedica a encontrar o significado divino do ouroboros, a serpente alada que devora a si mesma. Feliciano parte da interpretação clássica que via na imagem uma representação da infinitude, passando por aquela que privilegia a ação da passagem do tempo sobre o mundo, para daí chegar à conclusão de que o ouroboros representa a pura destruição das coisas, e, consequentemente, o Caos.
A obra exerceu enorme influência nos místicos de sua época, chegando mesmo a fomentar o nascimento de uma ordem totalmente consagrada ao hieróglifo, a Ordem dos Ouroboristas, que se dedicava unicamente, através de procedimentos mágicos, a promover o caos e a destruição das instituições do mundo. Contudo, logo perceberam que os procedimentos adotados não exibiam resultados satisfatórios, e decidiram tomar ações, por assim dizer, mais pragmáticas.
O resultado disso, embora bastante conhecido, é muito pouco reconhecido, já que suas evidências são muito bem camufladas. Por exemplo, sabe-se que Robespierre era um ouroborista, bem como Napoleão. Antes da suástica, o símbolo oficial do nazismo era o ouroboros. Derrida tinha uma primeira edição de De Urobori Interpretatio em sua biblioteca. Em um desses noticiários policiais popularescos, o repórter que entrevistava um estrangulador em série obteve como única resposta a exibição de um ouroboros tatuado.
Pode-se pensar que os ouroboristas fazem de tudo para esconder sua existência e suas intenções. Isso, obviamente, não passa de um erro grosseiro. Aos ouroboristas não interessa o mistério, tampouco a exibição; tudo o que eles buscam é o Caos, puro e destruidor. Por exemplo, você deve ter vindo até aqui esperando encontrar um texto ficcional; eu, no entanto, digo que tudo o que você acabou de ler é a pura verdade. Pronto: o Caos está lançado.
sexta-feira, 13 de maio de 2011
Biografia pequena de Rodolfo Párrega – (Perspectiva)
Rodolfo Vicente dos Santos Párrega nasceu no dia 15 de outubro de 1965, em São Bernardo, SP. Aos três anos já havia lido toda a obra de Marx, Engels, Lênin e Tsé-tung, a maioria em francês e alemão. Em 69, diante da impossibilidade de lutar contra a repressão com os artigos que escrevia para vários jornais de São Paulo e do Rio, entrou para a luta armada.
Entre 69 e 71, participou de diversos assaltos a bancos, ataques a aeroportos, seqüestro de figuras importantes, e atentados a líderes militares, até que seu grupo foi descoberto pela polícia psiônica. Acabou preso, torturado e deportado para a Inglaterra, onde escreveu seu primeiro romance, Terra usurpada, amplamente elogiado pela crítica contemporânea.
Em 72, com sete anos, mudou-se para França e fundou um terreiro de candomblé, tornando-se pai-de-santo. Iniciou um romance com Anaele Zekri, ex-guerrilheiro argelino, e publicou Terreiro vermelho, seu romance de maior sucesso. Em 1973 Zekri foi espancado e morto por um grupo racista extremista, e Párrega publica o drama em dois atos Ódio ódio ódio.
Alguns meses depois, aos 8 anos, Rodolfo Párrega comete suicídio tomando um vidro inteiro de comprimidos para dormir. Ao invés de uma carta, deixa escrita apenas uma pequena nota: “Se realmente houvesse algo que valesse a pena ser dito, não haveria necessidade de dizê-lo”
Hoje em dia sua obra ainda é razoavelmente estudada, principalmente pelos especialistas dos cultural e genre studies. Outros, contudo, consideram sua produção datada e em vias de entrar no absoluto ostracismo, acusando seus defensores de promovê-la por puro interesse ideológico, e etc., etc., etc.
quinta-feira, 5 de maio de 2011
Companhia II
Também não me lembro há quanto tempo estamos juntos; minha memória está cada vez pior. Contudo, julgo isso seja algo natural para quem se encontra na minha situação.
Confesso que no início eu dependia muito mais dele do que ele dependia de mim. Mas entendam: fiquei muito tempo na solidão, sem qualquer tipo de contato com outras pessoas, e aquilo estava me matando (sem sarcasmo). Foi nessa época que o encontrei, ou que ele me encontrou, ou talvez: que nos encontramos.
Desde então não nos separamos mais. Por nada. Não que eu ache isso ruim, mas não sei como ele consegue. Há muito tempo que perdi o pudor (suponho que essa seja outra conseqüência natural), mas ele... Bem, ele também é humano, não é? Mas mesmo assim insiste, de um modo ou de outro. Às vezes diz “dá um tempo!” enquanto se afasta, e eu vou deixando, pois ainda entendo essas coisas. Mas quando está quase indo embora, olha discretamente pra trás, e eu suspiro e o sigo, fingindo, para evitar constrangimentos, que sou quem implora por companhia.
Eu morri, mas não sei o que há do outro lado. Tudo por causa do medo. Não do meu, que, como tudo o que é individual, vai se escorrendo depois que se morre; mas daquele que ele compartilha comigo, junto com todo o resto, pro bem e pro mal.
domingo, 24 de abril de 2011
Companhia
Ele sempre está ao meu lado, onde quer que eu vá. A nossa união é umbilical, só eu o conheço profundamente, e ele a mim, de modo que outras pessoas o ignoram. Elas têm o delas também, mas nossa incapacidade de realmente ver as pessoas torna difícil percebê-lo.
Não adianta pedir pra ele dar um tempo, pra que eu possa passear sozinho, ir na padaria, ir a uma festa, ele não cede, e diz que não pode viver sem mim. Tenho o coração mole, e consinto. Talvez ele precise mais de mim do que eu dele.
Será que devo me livrar dele? É uma parte importante de mim, e sem ele eu não sou completo. Está certo que ele assusta um pouco quem eu deixo vê-lo, mas não quero medrosos à minha volta. Nem é tão assustador assim.
Não sei quando eu percebi a presença do fantasma, acho que ele sempre esteve ali.
quarta-feira, 20 de abril de 2011
Zumbi
Eu sempre achei que essa coisa de zumbi fosse uma metáfora. Mas nunca pensei nisso como uma ideia original, pelo contrário. Pra mim sempre pareceu óbvio a relação dos mortos-vivos comedores de cérebro, que vivem em função da fome, sem mente, sem raciocínio, transferindo sua doença para outros seres humanos sadios através de uma mordida violenta, com o “contexto do capitalismo atual”, o “consumismo descontrolado”, a “burrice generalizada”, essa porra toda. E pra quem ainda duvidava, aquele filme lá do Romero deixava isso absolutamente claro.
De modo que a idéia da metáfora zumbi era pra mim senso comum. Claro que agora sei que não é bem assim. Eu mesmo me tornei um zumbi há uns tempos atrás, depois de ter sido mordido na canela por um mendigo bêbado (por ter me recusado a lhe dar esmola). Agora sou obrigado a comer carne humana para sobreviver, sou incapaz de me recuperar de ferimentos (esse problema é especialmente desagradável), e um dia desses transformei um estudante adolescente (mordi o safado quando tentou me assaltar, com um canivete!). Claro, ainda mantive meu “intelecto”. Mas alguma coisa tinha de ser lenda, né?
Então ficou óbvio que não existe merda de metáfora alguma. A coisa é realmente como diziam. Acho que é por isso que as perguntas que me faço a respeito de minha situação nunca têm nada a ver com “questões filosóficas”, tipo “o que é a morte?”, ou onde “está deus agora?”, ou “o que define o ser humano?”. A pergunta que sempre me faço é: será que minha vida realmente mudou tanto?
sexta-feira, 8 de abril de 2011
Ditadura
Naquele tempo os subversivos tinham muito medo dos infiltrados; mas isso somente porque eles não sabiam da existência da polícia psiônica.
Éramos peritos em certos tipos de habilidades como leitura de mentes, rastreamento psíquico, previsão do futuro, essas coisas. Uma operação bem organizada era capaz de detectar um grupo revolucionário, apreender seus planos e localizar sua sede em um pouco mais de uma semana, tempo impossível para qualquer polícia secreta. De modo que posso dizer sem exagero que fomos peça-chave para o sustento do estado de exceção por tanto tempo.
Nossa eficiência não permitiria jamais deixar de localizar um subversivo no centro da minha própria família.
Mas meu filho era, afinal, meu filho; e mesmo com uma série de golpes mentais e invasões telepáticas, não nos foi possível descobrir o núcleo de seu grupo paramilitar. Assim, foi preciso partir para a tortura física, até que sua mente ficasse enfraquecida o bastante para conseguirmos extrair a informação necessária.
Não lembro que desculpa dei (ou deram) à minha mulher. Só lembro que quando tudo aquilo acabou e voltei para casa, tentei chorar, mas não pude.
Hoje entendo que uma ditadura não tem a ver com sombras, silêncios, ou medo; uma ditadura é poder saber o que há de mais profundo e escondido nos outros, mas, quando olhar e procurar lá no fundo si mesmo, não encontrar nada além de um monte imenso, doente e pútrido, de vazio.
segunda-feira, 28 de março de 2011
O Mal incerto
Eu deveria ter entendido os sinais… Mas como?
Eu deveria ter desconfiado quando sumiu a Lupita; e depois o Toby, e o Leco, a Cindi, o Uirá, e todos os outros bichinhos que tentamos criar. Mas de quem desconfiar senão dos outros?
Eu deveria ter achado estranho a expressão da Maria quando foi embora, não de raiva ou de cansaço, com seria de se esperar numa situação dessas, e sim de puro horror – mas como não sentir, ao invés da pena de quem tem medo, a raiva de quem tem coragem de chamar uma criança de demônio?
Mas agora está tudo claro: a faca ensangüentada na pequenina mão, os olhos vermelhos como duas brasas no escuro, o sorriso medonho de dentes de tubarão: isso só pode ser um demônio...
Ou... será que tenho alucinações, por causa dos ferimentos e do desespero? E logo eu, que sempre estive certa, que sempre defendi meu filho de tudo e de todos, logo eu tenho de viver a dúvida? Vivê-la logo agora, que vejo meu sangue escorrer-se, logo agora que estou morrendo?...
quinta-feira, 10 de março de 2011
Rosas
Duas coisas eram frequentemente comentadas na vizinhança sobre sua vida: como as rosas que plantava em seu jardim eram lindas apesar da terra pobre que em nada ajudava, e como sempre arrumava amantes violentos.
- Talvez as rosas sejam uma compensação que Deus lhe dá por ter de sofrer esse tipo de coisa, diziam os vizinhos quando escutavam as brigas que vinham de sua casa.
Ela, contudo, não aceitava esmola, mas sim pagamento. Pois o que eles não sabiam (embora o mencionassem como explicação absurda para aquele absurdo) era que ela escolhia a dedo os homens com quem se envolvia. Procurava sempre os piores, os mais vis, desonestos, covardes. Atraía-os para si e esperava até que chegasse o momento certo. Então punia sua violência com violência, cortando suas gargantas, perfurando seus corações, esfaqueando inúmeras vezes toda a extensão de seus corpos.
Em seguida levava seus corpos para o quintal e os enterrava. E daqueles pedaços de carne vinham o fertilizante que tornava as rosas tão fortes e o sangue que as fazia tão vermelhas.
Às vezes sentia-se cansada daquilo. Mas quando acordava pela manhã e via as pétalas vivas chorando orvalho dizia a si mesma.
- É um trato justo, Senhor.
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
Representação
A forma como ela entrou definitivamente no círculo importante do mundo das artes plásticas foi através da sua técnica da “pintura da realidade”. Não se sabia muito bem como, mas com pincéis e tintas aparentemente comuns, ela era capaz de pintar não telas que se configuravam como cópias perfeitas do mundo real, mas o mundo real em si.
Obviamente, seu sucesso inicial foi estrondoso. Todos queriam comprar suas telas, ou, como na verdade eram chamados, seus “objetos”. Deu inúmeras palestras e conferências ao redor do mundo, expôs nas galerias mais importantes da época, reuniu vários seguidores, discípulos, simpatizantes. A crítica especializada (e a não-especializada, embora de maneira mais simplória/menos elitista, dependendo de quem via) falava em uma “efetiva superação do modelo platônico”, num “meta-realismo”, em “anti-mímesis”. Ouviu-se em vários momentos a palavra “revolução”, mais ainda a palavra “fama”, mas foi a palavra “dinheiro”, embora pronunciada poucas vezes, que teve o maior papel nesses acontecimentos.
A revolução, contudo, não veio, e sua obra logo se tornou datada. Atualmente poucas pessoas ouviram falar nela, e, embora sua arte ainda esteja presente nos museus, nem mesmo os poucos especialistas em sua obra são capazes de não confundi-la com as demais peças do resto do acervo arqueológico.
sábado, 12 de fevereiro de 2011
Menino Deus
Quando Deus morreu, muitos quiseram participar do funeral, alguns para prestar sua homenagem e deixar transparecer a dor pela perda do Pai de todos nós, e outros para se certificar de que o déspota cruel e arbitrário havia realmente batido as botas e deixado a humanidade em paz.
Mas foi uma enorme surpresa para todos, fiéis e infiéis, quando, ao chegarem próximos ao caixão no qual jazia o Criador e darem um boa olhada lá dentro, perceberem que Deus, na verdade, não passava de um garotinho, desses que, mortos e com os olhos fechados, costuma-se dizer que se parecem, aqui não sem um certa ironia, com “anjinhos”.
No fim, ambos os grupos, fieis e infiéis, saíram de lá, por assim dizer, na falta de uma palavra melhor, “vazios”. Nem tanto por terem descoberto, no caso dos primeiros, de que no fim das contas nunca houve ninguém que estivesse realmente cuidando deles, e no caso dos segundos, que a culpa de todos os males do mundo não pertencia efetivamente a ninguém senão a eles mesmos, mas sim porque a morte de uma criança, seja ela um Ser supremo ou a mais comum e vulgar de todas, sempre abre uma ferida no mundo, que nada nem ninguém é capaz de curar.
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Sonhador
Todos as noites eu me dedico, involuntariamente, ao mesmo sonho: sou uma espécie de burro ou asno, muito velho e muito cansado, que, após um dia cheio de maus tratos, humilhações e trabalho forçado, deito-me para sonhar que sou um homem. Acontece que, talvez por só existir dentro do sonho de um burro, eu como segundo-homem nunca tenho sonhos, já que quando vou dormir o eu-burro é acordado para mais um longo dia de trabalho, e assim fica até que vai dormir novamente ou eu-mesmo acordo, deixando tudo para trás.
O problema é que ambos os sonhos me parecem tão reais que comecei a me questionar se na verdade eu não era um dos dois sonhados, o burro ou o segundo homem; assim, resolvi descobrir do que se tratava aquilo, se eu realmente era um dos dois (o que me parecia inverossímil), ou o que os dois eram de mim. Por um apego aos clássicos que sempre uso para disfarçar minha ignorância sobre um assunto, procurei meu volume de “As obras completas” e comecei a ler A interpretação dos Sonhos.
Mas minha leitura não se estendeu por muito tempo; pois cedo percebi que eu não era nem o asno humilhado que durante as noites fugia sonhando que era homem, nem o homem idealizado, que no entanto era incapaz de sonhar, mas sim aquilo que ficou perdido entre os dois, e somente no que neles não era possuía existência.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
O sonho mais sombrio
livremente inspirado numa peça de David Sylvian
Não acredito que demorou tão pouco tempo – tanto para que o homem conseguisse encontrar um novo lugar seguro para viver, quanto para que este novamente se destruísse.
Foi preciso viajar essa distância infinita para longe do nosso sistema solar para que pudéssemos encontrar um planeta com as condições mínimas para nossa existência – e ainda assim temos que viver debaixo dessa cúpula, tão alta e negra, como se um céu sombrio nos guardasse eternamente.
Mas mesmo diante desse sacrifício todo, a humanidade foi incapaz de aprender com seus erros; e criamos um novo motivo para que nos destruíssemos.
“Não é um novo motivo; é o mesmo, embora com uma aparência diferente” – diz ela, olhando-me num triste misto de medo e resignação. E ela tem razão: é sempre o mesmo motivo que nos destrói, aquilo que por tanto tempo fingimos não ser nosso, o nosso sonho mais sombrio.
“Tudo vai ficar bem”, minto – e a abraço forte, olhando para cima.
O céu está se partindo.