sábado, 2 de outubro de 2010

Clube da Utopia

Foi por um acaso que eu o achei, quando entrei, procurando fugir do calor, em um pequeno boteco no centro da cidade pra tomar uma coca. Caminhei até o balcão e pedi o refrigerante, que veio servido num porta-copos que julguei esquisito. Olhando-o melhor, vi que se tratava de um porta-copos muito mais requintado que o lugar supostamente teria, com o desenho de uma ilha pintado em aquarela, e, bordado em letras elegantes, as palavras “Clube da Utopia”.

Intrigado com aquilo, resolvi observar melhor o ambiente, e, para minha surpresa, vi os maiores líderes mundiais reunidos naquele boteco velho. Bebendo e fumando preciosidades, eles discutiam como cada um gostaria de ver seu país: um dizia que queria que lá só houvesse brancos; outro, que a industrialização chegasse a todos os setores; alguém disse que queria festa o ano inteiro; seu interlocutor, torcendo o nariz, queria que o cristianismo fosse levado a sério. Cada um construía sua utopia própria e imaginária, sem levar muito em conta qualquer maneira de torná-la real.

Após um tempo, finalmente notaram-me, e, vendo um novato, ficaram curiosos em saber minha utopia pessoal. Disse-lhes que era básica, uma sociedade justa, pacífica e igualitária, onde todos pudessem ser felizes de verdade. A resposta deles foi um olhar incrédulo, como se não conseguissem meu raciocínio; concluí perguntando, ora, não é esse o propósito da utopia original? Dessa vez os olhares ficaram neles mesmos, constrangidos, mas logo alguém pigarreou e a conversa voltou ao princípio.

Voltei alguns dias depois ao mesmo boteco, mas os líderes não estavam mais lá; acredito que o Clube não possua sede fixa. Contudo, minha coca foi servida num daqueles porta-copos esquisitos, só que um pouco diferente: a pintura da ilha era a mesma, o bordado agora dizia “Clube da Egotopia”.

domingo, 29 de agosto de 2010

Salvacionismo

Os primeiros deles chegaram ao Velho Mundo montados em serpentes marinhas de centenas de metros e em gigantescos pássaros canoros, que já anunciavam, com seus assobios doces, um outro lugar onde a vida nunca era velha. A primeira coisa que fizeram foi mostrar aos tão civilizados europeus que aquele deus do qual eles tanto falavam ou não existia de fato, ou havia escondido um bocado de coisas dos seus filhos. Tudo é assim lá, disseram os primeiros deles, essa coisa que vocês chamam magia só existe onde ela não é possível.

Mas nem tudo foi novidade. Sentindo-se ameaçado, o Velho Mundo tentou combater aqueles que vinham de longe com suas armas, seu ódio e seu discurso alfabetizado. Mas logo outros vieram, montados em novos seres, com tintas a prova de balas, canções de guerra e chuvas, fogos e raios em suas mãos.

Logo seus inimigos caíram um a um, os mais fortes deles sendo devorados; porém seus aliados casaram-se com suas filhas e filhos. Os europeus perceberam que, de um modo ou de outro, eles eram um povo se miscigenava, e não viram outra opção além de se render e se unir. Mas não perceberam que, para eles, união era uma escolha e não uma obrigação.

Foi na liberdade da escolha que se amaram. E assim eles, de canto algum, nos salvaram da civilização.

domingo, 22 de agosto de 2010

É o pâncreas!

O dia começou cedo hoje. Partimos ainda no escuro indo direto pro hospital. O difícil era entender o problema de Tânia, sempre a se segurar nos meus ombros, gemendo e grunhido coisas difíceis de traduzir. E a meio caminho ela grita: é o pâncreas! Achei tão repentina sua atitude que parei de sopetão esperando que ela me falasse como chegou a tamanha conclusão. Ela sem muita demora volta a gemer e grunhir e como acredito ser o certo a fazer nesse caso, não dei a mínima ao ocorrido. Foi assim que conseguimos caminhar em torno de 5 quarteirões, já que o táxi não apareceu a tempo. Ela ficava cada vez mais enrubescida e eu mais preocupado apesar de calado, não sabia bem o que dizer. Dor sempre é um acontecimento que nos tira a paciência e no caso dela parecia ser violenta. Ao entrarmos naquele ambiente esterilizado do hospital sentindo o frio do ar-condicionado no extremo ela simplesmente para e olha pra mim perguntando: o que fazemos aqui? Eu, admito, não soube o que responder. Foi quando tive a impressão de já tê-la vista naquele estado, mas não saberia dizer quando e nem como. Ela então volta a olhar o hospital e quase que escandalizada como se eu tivesse falado as piores coisas da vida sai bufando em passos pesados. Admito que passei alguns segundos para absorver aquilo, mas não tive escolha quando vi que de fato ela estava indo embora. Corri assim os 5 quarteirões de volta para casa vendo ela sempre a frente puta da vida. Ao entrar em casa tira toda a roupa e cai na cama como se nada tivesse acontecido. Eu me aproximo calado, pois não tinha idéia do que era aquilo e em seguida ela se vira abrindo os olhos, falando: o que foi querido? Acordado a essa hora. Venha pra cama... o que está fazendo ai parado? Está me assustando! Venha...

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Tânato, oficial de justiça

Mais um dia rotineiro de trabalho. Levantar cedo, me aprontar, sair, fazer meu dever, voltar, esperar o dia de amanhã. Sem brilho, sem calor, sem vida: tédio.

Não existe poesia no que faço, ao contrário do que disseram tantas pessoas, algumas delas tristemente inteligentes e erradas. Não existia ontem, com a religião, não existe hoje, com o ceticismo, e não existirá amanhã, não importa o que qualquer possível dialética consiga trazer.

Veja esse sujeito: bebendo seu vinho solitário, um prazer fugaz e que, no entanto, lhe trará o doce da vida à boca. É tanto que quando me percebe, percebo eu que algo lhe fica bambo por dentro. “Está na hora já?”, pergunta ele, e como resposta apenas ofereço minha expressão habitual de tédio. Me oferece vinho, recuso, ele diz que não quer ir. Penso em dizer-lhe que não tenho culpa, apenas cumpro ordens, sou apenas uma ramificação do sistema, mas, cara, não tenho o menor saco pra essa conversa de novo – além disso, eles nunca entendem. Mas ele, de supetão, quebra a garrafa, levanta-se e grita a plenos pulmões. A ironia daquilo me surpreende, e até me faz rir um pouco. Levanto, balanço a cabeça e vou embora dizendo meu bordão: ê trabalho de merda.

Quem lê o blog deve ter percebido que esse texto é uma outra visão do último texto de Igor. O interessante da reescritura é perceber a leitura do texto original que ela revela. Espero que Igor não fique chateado, hehehe.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Ainda não

Eram 22h, domingo. A semana iria começar. Estava sozinho no apartamento jogado no sofá. Molemente, eu passava os canais, quase sem ver. House, Friends, jogo do brasileirão, Crepúsculo dublado, Transformers. Tudo tão estúpido, sem sentido...

A internet não funcionava. Devia ser o vento ou a chuva. O chuveiro queimado eu não precisava naquele momento, depois daria um jeito. Aquela louça suja fingi que não era minha. Essa minha barba está ridícula, pensei. Mas isso é vaidade, chega desses sentimentos mesquinhos.

Resolvi tomar um pouco de vinho. Tinto seco, Merlot. Cor intensa, encorpado. Trouxe a garrafa pra sala, tomaria no bico, não tinha copo limpo. Me sentei no sofá e percebi que possuía companhia. Fiquei em silêncio, pensando no sentido daquilo. Nem olhei para o lado, já sabia quem era. Tomei um gole longo. Ela estava em seu traje habitual, bem à vontade. “Está na hora já?”. Ela apenas sorriu medonhamente. Ofereci um gole, e não obtive resposta. “Não quero ir, o tempo passou rápido demais.” Lembrei como é bom viver. Então quebrei a garrafa, levantei, dei um grito com todas as minhas forças. A Morte se levantou também. E simplesmente foi embora, satisfeita.

De Igor F. Martins, de novo, se garantindo.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Inverno é o novo verão ou A moda glacial

Todos adoravam o clima quente da cidade: o mar ficava mais lindo, a roupas mais leves e bonitas, os sorrisos mais brilhantes, o calor humano contagiava as relações.

Menos o Geraldo, que odiava o calor. Até o dia que encontrou uma lâmpada com um gênio e etc., e pediu que a cidade mudasse completamente o clima. E na manhã seguinte a neve cobria as ruas e o vento entrava frio pelas janelas.

Não demorou muito para a mudança de atitude: o turismo começou a explorar a beleza das paisagens embranquecidas, a moda dizia que roupas de inverno eram mais elegantes, o clima frio tornava as pessoas mais sóbrias e intelectualizadas, finalmente fazia sentido tomar um café expresso com seu cachecol enrolado no pescoço, até o mar ficara mais bonito, mais poético, mais velho mundo por assim dizer. E logo o clima quente foi repudiado e encarado como bárbaro, enquanto que todos os setores da sociedade continuavam felizes e orgulhosos.

Só os moradores de rua que não ficaram muito felizes com a mudança drástica na temperatura. Mas como eles rapidamente morreram de hipotermia, isso nem foi levado em consideração – melhor, a cidade ficara ainda mais bela sem eles, logo esquecidos, como o verão.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Só mais outro romance pós-humano

Eles se conheceram num chat do cyberespaço. Em pouco tempo configurou-se um desses relacionamentos virtuais tão comuns: apesar de residirem em locais distantes um do outro se encontravam todos os dias, combinavam em muitas coisas, sentiram-se apaixonados e decidiram, finalmente, namorar. Nada fora do comum e ao mesmo tempo tão singular, casual e destinado, corriqueiro e especial; enfim.

A distancia física era contornada graças aos avanços do avatar neural. Nenhum dos dois era inocente, e bem sabiam que os corpos esculturais que portavam e que sentiam não correspondiam aos originais que se conectavam à rede. E apesar de toda a tecnologia e precisão sensorial, concluíram que seria melhor a realidade, mesmo com suas imperfeições.

E foi com grande surpresa que, ao se encontrarem pessoalmente, descobriram que ela era na verdade ele e que ele era na verdade ela. Contudo, apesar de toda a decepção inicial, raciocinaram que não havia motivos reais para se separarem. Há quem diga até que vão se casar, mas cada um usando seu próprio computador, em sua própria cidade.