domingo, 4 de dezembro de 2011

Visão do Paraíso

A obra do meu falecido amigo Ricardo Narciso tem sido muito comentada atualmente, gerando uma infinidade de opiniões sobre seus textos. Alguns o consideram violentamente progressista, ou corajosamente reacionário, ou um apolítico irônico. É igualmente metafísico e materialista; experimental e conservador; um elevado esteta e um chulo inconsequente.

“Contraditório” é a leitmotiv dos detratores de Narciso. Para eles, tal defeito se deve à incapacidade do artista em lidar com a imensa variedade de sua própria obra. Dessa forma, teríamos várias aberrações, como o “clássico” ensaio sobre a relação da diáspora palestina e as comédias nonsense.

Há, contudo, aqueles que preferem “contradição”: o que Narciso realmente faz é um ataque constante à própria obra para tratar da impossibilidade atual de se chegar a uma Verdade. A contradição seria, portanto, não um defeito, mas sim o elemento formal que rege toda a obra do autor.

Tenho minha própria interpretação, biográfica, por assim dizer, baseada numa história interessante que Narciso me contou. Disse que caminhava aleatoriamente quando, sem querer, olhou para uma pessoa que vinha em sua direção e percebeu que era um anjo; entendeu isso quando, ao cruzar olhares com esse ser, pôde ter, por um milésimo de segundo, uma visão do Paraíso refletida em seus olhos.

Creio que esta seja a verdadeira chave para a sua obra. Embora ele nada tenha me dito, acredito que tal visão modificou meu amigo para sempre. Tendo consciência de que seria impossível representar o que vira, Narciso dedicou sua obra pós-encontro a ser um monumento da ruína. Atacando a tudo e, sobretudo, a si mesma, a obra de Narciso procura ser um espelho ao inverso da perfeição e ordem do Paraíso divino; e assim, o que meu amigo tenta dizer é que algo sublime também (ou só) pode ser humanamente construído por meio da destruição.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Um ser infinito

Para Poli

Há no zoológico local um ser fascinante, cuja espécie é desconhecida por todos, e que, acredito, só existe aqui. Bem, provavelmente existem outros iguais no mundo, mas “capturado” acho que este é o único, uma vez nunca havia ouvido falar dele. Contudo, também é possível que seus semelhantes estejam por todo lugar, irreconhecidos ou apagados, devido à sua natureza peculiar.

Este ser (pensei em dizer “criatura”, mas essa palavra contém uma carga pejorativa que contaminaria qualquer visão honesta sobre ele), aparentemente, não possui uma forma “fixa”. A qualquer momento ele pode se transmutar em qualquer outro animal, dos mais comuns aos mais fantásticos, com igual facilidade. Algumas vezes ele é um imenso leão dourado, e espanta as pessoas pela sua imponência; outras vezes é um cachorrinho vira-lata, daqueles que se encolhem num canto apenas esperando um afago que nunca aparece; já o vi na forma de um hipogrifo ou coisa ainda mais complexa, e todo mundo recuava sem entender aquilo; um vez foi um cordeiro, e tenho certeza que morreria naquele momento para salvar toda a humanidade de si mesma.

As pessoas passam, olham, perguntam, arregalam os olhos ou os levam para os lados, mas no final sempre ignoram. Acho que se trata de mais um dos sintomas da falta de interesse que as pessoas nutrem por tudo aquilo que não é óbvio.

De modo que passo os dias ao lado desse ser maravilhoso, imaginando uma forma de livrá-lo dessa prisão. Pois acredito que assim que estiver longe dessas grades ele poderá se abrir em toda a beleza da infinitude de suas possibilidades.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Alquimista

Apesar dos numerosos estudos praticados até hoje, a arte da alquimia atingiu seu ápice uma única vez na história, na Espanha medieval. A trajetória dessa ascensão é revelada através de pequenas notas cifradas, que constituem o registro de toda a aprendizagem do sábio Álvaro Lúlio.

Aqueles capazes de ler as notas se admiram com um jovem autodidata perspicaz o bastante para desvendar os maiores segredos da alquimia. Sabe-se pouco, contudo, da vida do alquimista, embora se possa pescar um pedaço aqui e ali em seus textos: por exemplo, que ele nasceu e morreu em Maiorca.

A mistura cristã, judia e árabe característica da ilha foi essencial no desenvolvimento dos estudos de Lúlio: foi a partir de elementos dessas três culturas que ele pôde desvendar o princípio essencial da Arte: cada elemento ou processo do trabalho alquímico representa uma idéia; a partir de sua manipulação é possível concretizar um conceito abstrato.

Assim, ensina-nos Lúlio: o mercúrio significa essência, o enxofre poder, o ouro sabedoria; derreter quer dizer conhecimento, ferver purificação; e assim por diante. Após anos de pesquisa foi possível tamanho domínio desse princípio por parte do sábio espanhol, que ele foi capaz de chegar ao conceito do Absoluto e assim criar um deus vivo.

É nesse ponto que os textos de Lúlio são interrompidos, e nada mais se sabe dele. Sua morte é dada como certa, em 1374. Várias são as teorias que explicam seu desaparecimento; a minha, embora um tanto amarga, tem o mérito de ser original. Acredito que Lúlio foi morto pelo deus que criou. Este, movido pelo orgulho natural da sua raça, não pôde suportar a humilhação da sua gênese: sua mente insondável foi incapaz de aceitar que ela – divina e portanto perfeita – fosse fruto daquilo que há de mais contingente e falho em toda a criação.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Cavalinhos Gregos

A primeira referência que se tem notícia sobre os cavalinhos gregos está numa ânfora encontrada na região do Épiro, e datada do séc. VIII a.C. Nela podemos ver um grupo das pequenas criaturas correndo numa linha ao longo do objeto, como se andassem em círculos.

Na peça anônima Hino Homérico a Hermes, cuja criação remonta aos séculos VII ou VI a.C., os cavalinhos são citados como servos de Hermes, ajudando o deus a entregar as mensagens do Olimpo aos mortais. Dois séculos mais tarde, seriam escritos estranhos versos elegíacos a Hipnos que mencionam os curiosos animais como filhos ou mascotes do deus do sono, e cuja função seria a de fornecer aos homens os mais variados tipos de sonhos de curta duração.

A bibliografia não é muito clara nesse ponto, mas aparentemente o papel que os cavalinhos gregos possuem no mito de Hipnos estaria na verdade relacionado ao mito de Calíope. A diferença, obviamente, está no resultado do contato entre os cavalinhos e os homens.

As próximas referências mais concretas acerca dos cavalinhos gregos estão em alguns bestiários medievais mais desconhecidos, como os de Palencia (1287), de Würzburg (1403) e de Lullus (1357). Em todos esses textos, os pequenos seres fantásticos são associados à inspiração demoníaca e à destruição da fé cristã.

O ceticismo que cresceria após o Renascimento escamoteou as alusões aos cavalinhos. Mas a ciência, que tanto destrói mitos, por vezes também ajuda, como se brincasse, a resgatá-los. Pois há apenas alguns meses atrás, finalmente um trio de cientistas pôde capturar um espécime de cavalinhos gregos. Infelizmente não foi possível manter o animal vivo, desfazendo-se ao primeiro toque numa infinidade de sentidos. Os cientistas, contudo, não ficaram desapontados; pelo contrário, dois deles estão com exposições montadas e o terceiro está prestes a lançar o seu primeiro romance.

sábado, 16 de julho de 2011

Sísifo

Minha esposa e eu estamos muito doentes. Ela está morrendo; eu, talvez já esteja morto.

Ela tem leucemia, num estágio terminal. Os médicos ainda aparecem aqui todos os dias, falam coisas incompreensíveis. Eu já quase não escuto mais. Ela, tenho certeza que não escuta há muito tempo.

Todos os dias eu me sento ao lado dela e vejo-a sofrer. Todos os dias alguém lhe dá drogas que parecem não fazer qualquer efeito; tentam fazê-la comer somente para colocar tudo para fora pouco depois; ela é invadida por mãos geladas, que ao invés de dignidade só lhe trazem humilhação; ela pede para se ver no espelho, como uma tortura, e chora pelo que vê.

Todos os dias ela me pede para matá-la.

Eu sempre nego. Digo que é impossível, que a amo, que isso é injusto, que não sou um assassino, que isso seria suicídio, que não posso perdê-la. Eu choro, ando pelo quarto, aperto minhas mãos até sangrar.

Ela só me olha tristemente e diz eu sei.

No fim eu sempre atendo seu pedido. Uso um travesseiro, desligo botões, aplico doses gigantescas de drogas que roubo do hospital. Mas no outro dia eu acordo sentado ao seu lado e vivemos o sofrimento novamente.

Antes eu achava que era só loucura, que eu vivia em minha mente o que eu não tinha coragem de fazer na realidade. Mas agora eu já não sei; tudo é tão real, toda a dor, as lágrimas, o último suspiro diário de minha esposa.

Todos os dias eu olho para trás e procuro por meus pecados. Por mais que eu tente fazer dos meus erros abominações, tenho por fim que admitir: sou um bom homem. Mas quando anoitece e eu tenho que matar minha esposa novamente, sempre chego à conclusão de que estou no inferno.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

O nazista e Baba Yaga

Keith Tompson - Hut of Baba Yaga

Enrich Weiss desertou durante o inverno de 43, embrenhando-se, à noite, na terrível floresta russa. Seu mal não era a vergonha da covardia (sabia que não era um covarde), mas sim a incredulidade. Como era possível aquele derrota? Acaso não era ele – e todos os alemães – um ariano, raça superior à dos eslavos em todos os aspectos? Então o que explicava a ruína final, que lhe parecia agora inevitável?

Seus pensamentos esbarraram na estranha cabana. A princípio ficou temeroso, pois contava apenas com uma pequena faca. Mas, observando melhor o estado miserável da habitação, concluiu que esta só poderia estar abandonada.

Surpreendeu-se ao encontrar lá dentro, sozinha, uma velha vestida em trapos. Ela, contudo, como se o esperasse, não esboçou reação ao vê-lo, deixando em Joseph uma inquietação sombria.

- Sou Enrich Weiss – sussurou.

- Sou Baba Yaga, a grande bruxa dessas imensas terras. Vejo em ti uma busca. Posso dar-te o que desejas; deves, contudo, vencer uma prova. Se fracassares, devorarei tua carne.

Enrich não soube se aquilo era uma piada ou uma armadilha; porém, algo na velha o que fez perceber que era verdade. Vendo uma oportunidade para livrar-se do que o afligia, disse:

- Desejo somente a verdade: a prova absoluta de que sou um homem superior.

A velha riu malignamente, revelando dentes pontiagudos:

- Terás a prova, a recompensa e o castigo de uma vez: basta que tires minha vida. Se fores capaz, tua superioridade estará provada para sempre; se falhares, terás a morte.

Enrich parou um instante, observando o sorriso cruel de Baba Yaga. Por fim, baixou a cabeça e abandonou a cabana, deixando a velha atrás de si. Antes que a porta se fechasse, imaginou tê-la ouvido rosnar-lhe palavras de desprezo. Não se virou, contudo. Restringiu-se à segurança da imaginação, como sempre fez.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Herdeiros de Lycaon

A licantropia é um fato. Porém, ao contrário do que se pensa, não se trata do velho mito do homem que se transforma em lobo; muito menos da neurose que faz o homem pensar ter sido transformado em animal. Isso seria ótimo, pois ao menos teríamos uma ideia do que estamos enfrentando.

Digo isso porque a licantropia real é ainda um mistério; sabe-se que ela existe, seus efeitos, e nada mais. É assustador pensar que algo tão macabro e comum esteja escondido das pessoas; ou que seja algo tão evidente que as pessoas se recusam a se dar conta.

A licantropia real (que curiosamente só aparece no início do século XX) é a doença que transforma homens em animais, de qualquer tipo, desde que seja mordido pelo bicho. Contudo, ao contrário do mito e da neurose, a transformação é real e irreversível. Mas o mais surpreendente é que o inverso também é válido: um animal mordido por uma pessoa infectada consequentemente se transforma em ser humano.

O maior motivo para a invisibilidade da licantropia são suas próprias vítimas: os párias, homens ou animais. Mendigos, menores abandonados, animais de rua, pragas (me pergunto se Kafka conhecia a doença); esses são nossos licantropos, que se metamorfoseiam de uns para os outros, até acabar sacrificados, anonimamente, como viveram.

A licantropia não é uma alegoria. Antes o fosse, pois assim demonstraria que pelo menos alguém reflete sobre ela – o que abrandaria um pouco minha solidão. Pois não posso negar que ao menos eu resolvi encarar o problema – o qual, na verdade, considero menos uma doença do que um sintoma. Um sintoma, talvez, desses nossos tempos, em que mesmo as mais profundas certezas, tanto as nossas quanto as dos outros, são impiedosamente arruinadas, em favor de uma miséria que não deveria caber a ninguém.