segunda-feira, 1 de julho de 2013

Arte

A arte é intenção ou percepção? Até hoje não consigo me decidir sobre a resposta. Sempre que me faço essa pergunta, lembro-me daquela vez em que os alienígenas chegaram à Terra. Como sempre fora esperado que fizessem, pediram-nos que fossem levados ao nosso líder. Foi o que, humildemente, fizemos. Diante dele explicaram, com sinceridade não humana, seus planos: observariam as condições de nosso planeta e de nossa vida, e, dependendo do que vissem, decidiriam o que fazer: tomariam nosso planeta ou iriam embora, deixando tudo como sempre foi. Nosso líder, que era bastante sábio (ou, talvez, bastante ingênuo), escolheu como primeiro destino uma de nossas exuberantes florestas tropicais. Bastou ouvir o canto de nossos pássaros para que os alienígenas decidissem voltar para a solidão infinita do espaço que, afinal, não era tão solitária assim. Nosso líder, satisfeito consigo mesmo, atreveu-se a perguntar o porquê de uma decisão tão rápida e certeira. Os alienígenas então disseram que um planeta no qual os próprios animais eram capazes de fazer arte era demasiado evoluído para que merecesse ser subjugado.

domingo, 28 de abril de 2013

Uirapuru



Um amigo (que soube disso quando foi visitar sua pequena cidade natal) contou-me essa história há pouco tempo, num tom entre verdade triste e mentira enigmática; talvez não haja nenhum outro tom adequado para ela, afinal.

Matias, filho do prefeito da cidade, sempre foi um menino doente. Ao terminar o ensino médio, foi obrigado a trancar-se em casa, devido à fraqueza constante. Isolado, dedicou-se, freneticamente, a ler e escrever, principalmente poesia. Algum tempo depois, reuniu seus poemas e lançou um livro, chamado “Últimos cantos”. Seu pai bancou a publicação e ajudou a distribuir, principalmente entre os antigos colegas de Matias.

Pouco depois veio, terrível e inexplicável, a onda de suicídios. Não muitos, mas o suficiente para abalar a cidadezinha. Não demoraram a perceber que todos os suicidas tinham recebido e, provavelmente lido, “Últimos cantos”. Surgiu o boato de que o livro seria amaldiçoado, vingança invejosa do jovem que não podia viver.

Alguém sugeriu que fossem tirar satisfação com Matias, obrigá-lo a confessar e retirar a maldição. Não o fizeram pelo respeito que seu pai tinha na cidade. De toda forma, pouco depois o próprio Matias morreria também, vítima da doença sem nome que o corroía desde sempre.

A história, como não poderia deixar de ser, me inquietou bastante. Meu amigo me revelou que possuía um dos exemplares de “Últimos cantos” que sobreviveram à tragédia. Não sem um vergonhoso receio, li o livro. É fabuloso. Ao ponto de me deixar sem palavras para descrevê-lo.

Lembrei-me agora do que meu pai me contava sobre o Uirapuru. Dizem que seu canto é tão belo que toda a floresta, em reverência, se cala para ouvi-lo cantar.

O livro de Matias deveria se chamar “Uirapuru”; assim, não haveria mais nenhum suicídio misterioso, nenhuma maldição. Pois poderia haver maior silêncio do que o da morte?

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Teólogo



O tempo sempre foi uma questão central em nossos grandes monoteísmos, polvilhando constantemente problemas na mente de seus melhores pensadores. Desses justos, o maior dos tempos recentes foi, indubitavelmente, Walter Benjamin; entretanto, o título de mais interessante, deve, se há justiça no mundo, ser entregue ao padre argentino Xavier Alonso Müller.

Em 1947, Müller publicou o opúsculo intitulado “Apocalipse e Regresso”, no qual aponta a razão das desgraças humanas: ao invés de estar se aproximando do Fim, o mundo na verdade estaria se afastando dele. Explicando melhor: para Müller, o Apocalipse já teria acontecido há milênios. Nós, homens atuais, somos os descendentes daqueles que, impedidos de alcançar o Paraíso, foram condenados a passar o resto dos tempos na danação, ou seja, na própria Terra. Assim, todos os acontecimentos teológicos importantes dos quais temos notícia seriam meros reflexos distorcidos dos verdadeiros eventos ocorridos antes do Apocalipse, encenações de uma memória teimosamente saudosista.

Diante desse conhecimento revelador, Müller descarta as atitudes mais óbvias: implorar misericórdia a Deus ou orgulhosamente desprezá-lo. Para o padre, isso significaria apenas a manutenção das atitudes arquetípicas: fé intranscendível e ateísmo improdutivo. Sua solução, ao contrário, é muito mais refinada.

Müller propõe que a humanidade concentre todos os seus esforços no avanço científico até alcançar o nível tecnológico necessário para criar uma máquina do tempo. Dessa forma, seria possível levar, mesmo que de pouco em pouco, toda uma agora consciente humanidade para a época pré-apocalíptica, garantindo finalmente a todos a Salvação irrevogável.

É difícil fazer um comentário final sobre a obra de Müller. Há um, porém, que, em seu leve deboche, sempre me pareceu bastante pertinente: “Apocalipse e Regresso é uma obra exemplar, uma vez que, depois de Auschwitz, o mundo só poderia contar com um Messias que salvasse a humanidade passando a perna no próprio Deus”. 

sábado, 29 de setembro de 2012

Equação


Joaquín Gómez era um grande matemático. E como todo grande matemático, era também um filósofo. Consequentemente, o que Gómez, no fim, buscava, era uma forma de transcendência, que, devido talvez à influência do catolicismo (sempre ele), equivalia, para nosso matemático, à felicidade da raça humana.

Assim, Gómez dedicou grande parte de sua atividade intelectual a encontrar um caminho definitivo para a evolução da humanidade. Este só poderia ser descrito, afinal, através da linguagem matemática, a única que não permitiria dubiedade.

Cabe aqui, para não enganar o leitor, um esclarecimento de ordem cronológica: Gómez era um contemporâneo nosso, um “filho do século XXI”, se é que tal coisa existe.

De modo que o pensamento de Gómez é uma resposta consciente a esse caldeirão fumegante de incertezas no qual cozinhamos. Essa consciência é notável no método do matemático.

A partir de uma longa e minuciosa pesquisa em inúmeros tratados de antropologia e filosofia, Gómez pôde chegar um número de valores privilegiados e negados pela humanidade de maneira geral. Transformados em elementos, tais valores puderam ser organizados na forma de uma equação cuja raiz equivalia à felicidade eterna do ser humano.

Intitulado “O Teorema do Progresso” (El Teorema del Progreso), o tratado de Gómez que apresenta essa equação é uma obra-prima das ciências humanas, matemáticas e da filosofia. Contudo, as editoras não pensaram assim. As universitárias acharam a obra de Gómez uma “brincadeira positivista de mau-gosto”; as comerciais nem se deram ao trabalho de responder.

Sem possibilidades de bancar ele mesmo uma edição, e intentando atingir um público maior, sobrou a Gómez publicar sua obra no formato de um blog. Atualmente, contudo, o link para a página está quebrado. Gómez desapareceu, sua obra não pode ser mais lida, e a humanidade segue seu próprio caminho, em direção a um abismo qualquer.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Spam



Já faz algum tempo que o recebi por e-mail de alguma amizade ou ex-amizade; não me lembro bem. Sei que, como a mensagem parecia confiável, deixei-o entrar, e só o percebi quando era tarde. Quando me dei conta, tentei deletá-lo imediatamente; mas fui surpreendido com seu apelo de que não o matasse. Aquilo, como não poderia deixar de ser, me comoveu; e é por isso que ele até hoje está aqui.

Seu humor reúne aqueles três atributos que, combinados, tornam qualquer um insuportável: ironia, sarcasmo e cinismo. Mas, talvez devido a sua dimensão (tem só alguns bytes), eu geralmente o acho divertido; ele me lembra Woody Allen.

Sua brincadeira favorita é a ameaça, e gosta de dizer que vai “escancarar minha privacidade”. Não sou uma pessoa de segredos, mas não gosto que leiam minha literatura (acho-a muito ruim). Quando ele se aproxima da pasta “Obras”, faço cara feia e ele recua deixando escapar um sorrisinho que é como um lag, e que me faz estremecer.

Pensei em chamá-lo Odradek, mas depois percebi que seria despropositado. Não o chamo nada e ele vem quando quer.

Três ou quatro vezes sonhei que ele escapava da tela e vinha até meu quarto onde eu, efetivamente, dormia. Carregava, de alguma forma, uma faca. Ou talvez fosse um estilete. Não me fazia mal, mas me espiava por horas a fio, respirando calmamente, como quem observa a paisagem correndo pela janela de um trem.

Sei que é mau e que me odeia; no fundo, também o detesto. Mas o suporto por saber que posso me livrar dele quando quiser. Ele também tem consciência desse fato, mas, desde seu apelo inicial, não tocamos no assunto. Pergunto-me se essa situação é certa. Mas sei que é a única forma para que ambos possamos continuar existindo.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

H. P. Lovecraft



Entender verdadeiramente a obra de um autor requer uma chave muitas vezes encoberta pela própria obra; é o que acontece com H. P. Lovecraft. Textos como The Call of Cthulhu e Supernatural Horror in Literature brilharam tanto em sua grandeza que ofuscaram os dois textos seminais da obra do escritor: Pickman’s Model e Notes on Writing Weird Fiction.

O que talvez tenha dificultado o reconhecimento da importância desses textos foi a incapacidade, por parte dos leitores de Lovecraft, de considera-los em conjunto, atentando assim para seus detalhes mais importantes. Vejamos: Notes..., um texto crítico, parece uma espécie de manual de como escrever contos fantásticos.  Principal argumento: o elemento vital de um conto fantástico não é seu enredo, mas sim a atmosfera criada pelo narrador. Ou seja, a qualidade do conto se deve mais a uma questão de técnica do que de imaginação.

Pickman’s Model conta a história de um homem profundamente abalado pelas sinistras telas de um exímio pintor: Pickman. Suas telas, extremamente realistas, versam sobre monstros horríveis. Contudo, não é a temática das obras que desestabiliza o narrador, mas sim a incrível técnica de Pickman; o realismo de suas telas se deve ao fato de que se utilizava de modelos reais – monstros reais.

As mãos do leitor atento começam a tremer, intuindo aonde quero chegar: a excelência da obra do autor norte-americano é fruto dos modelos que ele – assim como Pickman – tinha à disposição. O fato de que Lovecraft tivera diversas crises nervosas durante sua vida adquire extrema relevância: como mostra sua literatura, o conhecimento do horror conduz à loucura. “Mas isso é biografismo”, argumenta o leitor inquieto. Melhor assim. Dormirá melhor ao fingir ignorar que, na submersa cidade de R'lyeh, o grande Cthulhu espera, dormindo, o dia em que acordará para destruir a humanidade.

domingo, 19 de agosto de 2012

Um ignorado milagre


No ano de 1953, na sertaneja vila de Taperinha, o padre Damião Queiroz da Fonseca chamou a atenção por ter desenvolvido nas costas, de repente, um belo par de asas brancas.

Sendo padre, a associação com os anjos foi instantânea, e o milagre espalhado por todo o sertão. A notícia chegou ao bispo de Petrolina, que, concomitantemente maravilhado e desconfiado (ossos do ofício), decidiu verificar pessoalmente o ocorrido.

Lá, o Bispo pôde contemplar o milagre aplumado do padre Damião, inquirindo-lhe a atitude que lhe dera tal graça. Nada, sorriu tímido o padre, e o Bispo reconheceu na humildade do pároco, bem como no atrofiamento de seus braços, a prova definitiva de que se deparava com um santo[1].

O vaticano, contudo, não considerou a narrativa do Bispo uma prova tão definitiva assim, receitando cuidado antes de assumir a santificação. Disse ao Bispo que aguardasse, pois logo chegaria um representante para averiguar o caso.

Enquanto isso, padre Damião ia mudando. Sumiram os braços, as pernas arquejaram, o tronco inclinou-se, o peito estufou, os olhos abobalharam, e, finalmente, nasceu-lhe penas pelo corpo e um bico na cara bem a tempo de receber o visitante romano. Este, embora admirado com o pombo gigante, disse que não podia canoniza-lo: “Santos são apenas homens, não bichos”[2].

O Bispo ainda procurou atentar para o milagre do padre que se tornara manifestação do Espírito Santo, mas o fato é que se tornou insuportável a sujeira e os arrulhos monumentais produzidos pelo ex-padre. Assim, Taperinha aproveitou bastante a tranquilidade depois de finalmente se livrar do seu milagre.


[1] Segundo o Bispo, diminuição dos braços do padre era um sinal do toque da divindade uma vez que este “ficaria livre de tocar com as mãos nas impurezas do mundo material” (VENÂNCIO, Gilmar. História da Diocese de Petrolina).
[2] Idem, Ibidem.