A
arte é intenção ou percepção? Até hoje não consigo me decidir sobre a resposta.
Sempre que me faço essa pergunta, lembro-me daquela vez em que os alienígenas
chegaram à Terra. Como sempre fora esperado que fizessem, pediram-nos que
fossem levados ao nosso líder. Foi o que, humildemente, fizemos. Diante dele
explicaram, com sinceridade não humana, seus planos: observariam as condições
de nosso planeta e de nossa vida, e, dependendo do que vissem, decidiriam o que
fazer: tomariam nosso planeta ou iriam embora, deixando tudo como sempre foi.
Nosso líder, que era bastante sábio (ou, talvez, bastante ingênuo), escolheu
como primeiro destino uma de nossas exuberantes florestas tropicais. Bastou ouvir
o canto de nossos pássaros para que os alienígenas decidissem voltar para a
solidão infinita do espaço que, afinal, não era tão solitária assim. Nosso
líder, satisfeito consigo mesmo, atreveu-se a perguntar o porquê de uma decisão
tão rápida e certeira. Os alienígenas então disseram que um planeta no qual os
próprios animais eram capazes de fazer arte era demasiado evoluído para que
merecesse ser subjugado.
segunda-feira, 1 de julho de 2013
domingo, 28 de abril de 2013
Uirapuru
Um amigo (que soube disso quando
foi visitar sua pequena cidade natal) contou-me essa história há pouco tempo,
num tom entre verdade triste e mentira enigmática; talvez não haja nenhum outro
tom adequado para ela, afinal.
Matias, filho do prefeito da
cidade, sempre foi um menino doente. Ao terminar o ensino médio, foi obrigado a
trancar-se em casa, devido à fraqueza constante. Isolado, dedicou-se,
freneticamente, a ler e escrever, principalmente poesia. Algum tempo depois, reuniu
seus poemas e lançou um livro, chamado “Últimos cantos”. Seu pai bancou a
publicação e ajudou a distribuir, principalmente entre os antigos colegas de
Matias.
Pouco depois veio, terrível e
inexplicável, a onda de suicídios. Não muitos, mas o suficiente para abalar a
cidadezinha. Não demoraram a perceber que todos os suicidas tinham recebido e,
provavelmente lido, “Últimos cantos”. Surgiu o boato de que o livro seria
amaldiçoado, vingança invejosa do jovem que não podia viver.
Alguém sugeriu que fossem tirar
satisfação com Matias, obrigá-lo a confessar e retirar a maldição. Não o
fizeram pelo respeito que seu pai tinha na cidade. De toda forma, pouco depois
o próprio Matias morreria também, vítima da doença sem nome que o corroía desde
sempre.
A história, como não poderia
deixar de ser, me inquietou bastante. Meu amigo me revelou que possuía um dos
exemplares de “Últimos cantos” que sobreviveram à tragédia. Não sem um
vergonhoso receio, li o livro. É fabuloso. Ao ponto de me deixar sem palavras para
descrevê-lo.
Lembrei-me agora do que meu pai
me contava sobre o Uirapuru. Dizem que seu canto é tão belo que toda a floresta,
em reverência, se cala para ouvi-lo cantar.
O livro de Matias deveria se
chamar “Uirapuru”; assim, não haveria mais nenhum suicídio misterioso, nenhuma
maldição. Pois poderia haver maior silêncio do que o da morte?
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
Teólogo
O tempo sempre foi uma questão
central em nossos grandes monoteísmos, polvilhando constantemente problemas na
mente de seus melhores pensadores. Desses justos, o maior dos tempos recentes
foi, indubitavelmente, Walter Benjamin; entretanto, o título de mais
interessante, deve, se há justiça no mundo, ser entregue ao padre argentino Xavier
Alonso Müller.
Em 1947, Müller publicou o
opúsculo intitulado “Apocalipse e Regresso”, no qual aponta a razão das
desgraças humanas: ao invés de estar se aproximando do Fim, o mundo na verdade
estaria se afastando dele. Explicando melhor: para Müller, o Apocalipse já
teria acontecido há milênios. Nós, homens atuais, somos os descendentes daqueles
que, impedidos de alcançar o Paraíso, foram condenados a passar o resto dos
tempos na danação, ou seja, na própria Terra. Assim, todos os acontecimentos
teológicos importantes dos quais temos notícia seriam meros reflexos distorcidos
dos verdadeiros eventos ocorridos antes do Apocalipse, encenações de uma
memória teimosamente saudosista.
Diante desse conhecimento
revelador, Müller descarta as atitudes mais óbvias: implorar misericórdia a
Deus ou orgulhosamente desprezá-lo. Para o padre, isso significaria apenas a
manutenção das atitudes arquetípicas: fé intranscendível e ateísmo improdutivo.
Sua solução, ao contrário, é muito mais refinada.
Müller propõe que a humanidade
concentre todos os seus esforços no avanço científico até alcançar o nível
tecnológico necessário para criar uma máquina do tempo. Dessa forma, seria possível
levar, mesmo que de pouco em pouco, toda uma agora consciente humanidade para a
época pré-apocalíptica, garantindo finalmente a todos a Salvação irrevogável.
É difícil fazer um comentário
final sobre a obra de Müller. Há um, porém, que, em seu leve deboche, sempre me
pareceu bastante pertinente: “Apocalipse
e Regresso é uma obra exemplar, uma vez que, depois de Auschwitz, o mundo
só poderia contar com um Messias que salvasse a humanidade passando a perna no
próprio Deus”.
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sábado, 29 de setembro de 2012
Equação
Joaquín Gómez era um grande
matemático. E como todo grande matemático, era também um filósofo. Consequentemente,
o que Gómez, no fim, buscava, era uma forma de transcendência, que, devido
talvez à influência do catolicismo (sempre ele), equivalia, para nosso
matemático, à felicidade da raça humana.
Assim, Gómez dedicou grande parte
de sua atividade intelectual a encontrar um caminho definitivo para a evolução
da humanidade. Este só poderia ser descrito, afinal, através da linguagem
matemática, a única que não permitiria dubiedade.
Cabe aqui, para não enganar o
leitor, um esclarecimento de ordem cronológica: Gómez era um contemporâneo
nosso, um “filho do século XXI”, se é que tal coisa existe.
De modo que o pensamento de Gómez
é uma resposta consciente a esse caldeirão fumegante de incertezas no qual
cozinhamos. Essa consciência é notável no método do matemático.
A partir de uma longa e minuciosa
pesquisa em inúmeros tratados de antropologia e filosofia, Gómez pôde chegar um
número de valores privilegiados e negados pela humanidade de maneira geral.
Transformados em elementos, tais valores puderam ser organizados na forma de
uma equação cuja raiz equivalia à felicidade eterna do ser humano.
Intitulado “O Teorema do
Progresso” (El Teorema del Progreso),
o tratado de Gómez que apresenta essa equação é uma obra-prima das ciências
humanas, matemáticas e da filosofia. Contudo, as editoras não pensaram assim. As
universitárias acharam a obra de Gómez uma “brincadeira positivista de mau-gosto”;
as comerciais nem se deram ao trabalho de responder.
Sem possibilidades de bancar ele
mesmo uma edição, e intentando atingir um público maior, sobrou a Gómez
publicar sua obra no formato de um blog. Atualmente, contudo, o link para a página está quebrado. Gómez
desapareceu, sua obra não pode ser mais lida, e a humanidade segue seu próprio
caminho, em direção a um abismo qualquer.
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
Spam
Já faz algum tempo que o recebi
por e-mail de alguma amizade ou ex-amizade; não me lembro bem. Sei que, como a
mensagem parecia confiável, deixei-o entrar, e só o percebi quando era tarde.
Quando me dei conta, tentei deletá-lo imediatamente; mas fui surpreendido com
seu apelo de que não o matasse.
Aquilo, como não poderia deixar de ser, me comoveu; e é por isso que ele até
hoje está aqui.
Seu humor reúne aqueles três atributos
que, combinados, tornam qualquer um insuportável: ironia, sarcasmo e cinismo. Mas, talvez
devido a sua dimensão (tem só alguns bytes), eu geralmente o acho divertido; ele
me lembra Woody Allen.
Sua brincadeira favorita é a
ameaça, e gosta de dizer que vai “escancarar minha privacidade”. Não sou uma
pessoa de segredos, mas não gosto que leiam minha literatura (acho-a muito
ruim). Quando ele se aproxima da pasta “Obras”, faço cara feia e ele recua
deixando escapar um sorrisinho que é como um lag, e que me faz estremecer.
Pensei em chamá-lo Odradek, mas
depois percebi que seria despropositado. Não o chamo nada e ele vem quando
quer.
Três ou quatro vezes sonhei que
ele escapava da tela e vinha até meu quarto onde eu, efetivamente, dormia.
Carregava, de alguma forma, uma faca. Ou talvez fosse um estilete. Não me fazia
mal, mas me espiava por horas a fio, respirando calmamente, como quem observa a
paisagem correndo pela janela de um trem.
Sei que é mau e que me odeia; no
fundo, também o detesto. Mas o suporto por saber que posso me livrar dele
quando quiser. Ele também tem consciência desse fato, mas, desde seu apelo
inicial, não tocamos no assunto. Pergunto-me se essa situação é certa. Mas sei que é a única forma para
que ambos possamos continuar existindo.
quarta-feira, 22 de agosto de 2012
H. P. Lovecraft
Entender
verdadeiramente a obra de um autor requer uma chave muitas vezes encoberta pela
própria obra; é o que acontece com H. P. Lovecraft. Textos como The Call of Cthulhu e Supernatural Horror in Literature
brilharam tanto em sua grandeza que ofuscaram os dois textos seminais da obra
do escritor: Pickman’s Model e Notes on Writing Weird Fiction.
O
que talvez tenha dificultado o reconhecimento da importância desses textos foi
a incapacidade, por parte dos leitores de Lovecraft, de considera-los em
conjunto, atentando assim para seus detalhes mais importantes. Vejamos: Notes..., um texto crítico, parece uma
espécie de manual de como escrever contos fantásticos. Principal argumento: o elemento vital de um
conto fantástico não é seu enredo, mas sim a atmosfera criada pelo narrador. Ou
seja, a qualidade do conto se deve mais a uma questão de técnica do que de
imaginação.
Já
Pickman’s Model conta a história de
um homem profundamente abalado pelas sinistras telas de um exímio pintor:
Pickman. Suas telas, extremamente realistas, versam sobre monstros horríveis. Contudo,
não é a temática das obras que desestabiliza o narrador, mas sim a incrível
técnica de Pickman; o realismo de suas telas se deve ao fato de que se
utilizava de modelos reais – monstros reais.
As
mãos do leitor atento começam a tremer, intuindo aonde quero chegar: a
excelência da obra do autor norte-americano é fruto dos modelos que ele – assim
como Pickman – tinha à disposição. O fato de que Lovecraft tivera diversas crises nervosas durante sua vida adquire extrema relevância: como mostra
sua literatura, o conhecimento do horror conduz à loucura. “Mas isso é
biografismo”, argumenta o leitor inquieto. Melhor assim. Dormirá melhor ao
fingir ignorar que, na submersa cidade de R'lyeh, o grande Cthulhu espera, dormindo, o dia em que acordará para
destruir a humanidade.
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domingo, 19 de agosto de 2012
Um ignorado milagre
No
ano de 1953, na sertaneja vila de Taperinha, o padre Damião Queiroz da Fonseca
chamou a atenção por ter desenvolvido nas costas, de repente, um belo par de
asas brancas.
Sendo
padre, a associação com os anjos foi instantânea, e o milagre espalhado por
todo o sertão. A notícia chegou ao bispo de Petrolina, que, concomitantemente
maravilhado e desconfiado (ossos do ofício), decidiu verificar pessoalmente o
ocorrido.
Lá,
o Bispo pôde contemplar o milagre aplumado do padre Damião, inquirindo-lhe a
atitude que lhe dera tal graça. Nada, sorriu tímido o padre, e o Bispo
reconheceu na humildade do pároco, bem como no atrofiamento de seus braços, a
prova definitiva de que se deparava com um santo[1].
O
vaticano, contudo, não considerou a narrativa do Bispo uma prova tão definitiva
assim, receitando cuidado antes de assumir a santificação. Disse ao Bispo que
aguardasse, pois logo chegaria um representante para averiguar o caso.
Enquanto
isso, padre Damião ia mudando. Sumiram os braços, as pernas arquejaram, o
tronco inclinou-se, o peito estufou, os olhos abobalharam, e, finalmente,
nasceu-lhe penas pelo corpo e um bico na cara bem a tempo de receber o
visitante romano. Este, embora admirado com o pombo gigante, disse que não
podia canoniza-lo: “Santos são apenas homens, não bichos”[2].
O
Bispo ainda procurou atentar para o milagre do padre que se tornara
manifestação do Espírito Santo, mas o fato é que se tornou insuportável a
sujeira e os arrulhos monumentais produzidos pelo ex-padre. Assim, Taperinha
aproveitou bastante a tranquilidade depois de finalmente se livrar do seu
milagre.
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