quarta-feira, 20 de abril de 2011

Zumbi

Eu sempre achei que essa coisa de zumbi fosse uma metáfora. Mas nunca pensei nisso como uma ideia original, pelo contrário. Pra mim sempre pareceu óbvio a relação dos mortos-vivos comedores de cérebro, que vivem em função da fome, sem mente, sem raciocínio, transferindo sua doença para outros seres humanos sadios através de uma mordida violenta, com o “contexto do capitalismo atual”, o “consumismo descontrolado”, a “burrice generalizada”, essa porra toda. E pra quem ainda duvidava, aquele filme lá do Romero deixava isso absolutamente claro.

De modo que a idéia da metáfora zumbi era pra mim senso comum. Claro que agora sei que não é bem assim. Eu mesmo me tornei um zumbi há uns tempos atrás, depois de ter sido mordido na canela por um mendigo bêbado (por ter me recusado a lhe dar esmola). Agora sou obrigado a comer carne humana para sobreviver, sou incapaz de me recuperar de ferimentos (esse problema é especialmente desagradável), e um dia desses transformei um estudante adolescente (mordi o safado quando tentou me assaltar, com um canivete!). Claro, ainda mantive meu “intelecto”. Mas alguma coisa tinha de ser lenda, né?

Então ficou óbvio que não existe merda de metáfora alguma. A coisa é realmente como diziam. Acho que é por isso que as perguntas que me faço a respeito de minha situação nunca têm nada a ver com “questões filosóficas”, tipo “o que é a morte?”, ou onde “está deus agora?”, ou “o que define o ser humano?”. A pergunta que sempre me faço é: será que minha vida realmente mudou tanto?

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ditadura

Naquele tempo os subversivos tinham muito medo dos infiltrados; mas isso somente porque eles não sabiam da existência da polícia psiônica.

Éramos peritos em certos tipos de habilidades como leitura de mentes, rastreamento psíquico, previsão do futuro, essas coisas. Uma operação bem organizada era capaz de detectar um grupo revolucionário, apreender seus planos e localizar sua sede em um pouco mais de uma semana, tempo impossível para qualquer polícia secreta. De modo que posso dizer sem exagero que fomos peça-chave para o sustento do estado de exceção por tanto tempo.

Nossa eficiência não permitiria jamais deixar de localizar um subversivo no centro da minha própria família.

Mas meu filho era, afinal, meu filho; e mesmo com uma série de golpes mentais e invasões telepáticas, não nos foi possível descobrir o núcleo de seu grupo paramilitar. Assim, foi preciso partir para a tortura física, até que sua mente ficasse enfraquecida o bastante para conseguirmos extrair a informação necessária.

Não lembro que desculpa dei (ou deram) à minha mulher. Só lembro que quando tudo aquilo acabou e voltei para casa, tentei chorar, mas não pude.

Hoje entendo que uma ditadura não tem a ver com sombras, silêncios, ou medo; uma ditadura é poder saber o que há de mais profundo e escondido nos outros, mas, quando olhar e procurar lá no fundo si mesmo, não encontrar nada além de um monte imenso, doente e pútrido, de vazio.

segunda-feira, 28 de março de 2011

O Mal incerto

Eu deveria ter entendido os sinais… Mas como?

Eu deveria ter desconfiado quando sumiu a Lupita; e depois o Toby, e o Leco, a Cindi, o Uirá, e todos os outros bichinhos que tentamos criar. Mas de quem desconfiar senão dos outros?

Eu deveria ter achado estranho a expressão da Maria quando foi embora, não de raiva ou de cansaço, com seria de se esperar numa situação dessas, e sim de puro horror – mas como não sentir, ao invés da pena de quem tem medo, a raiva de quem tem coragem de chamar uma criança de demônio?

Mas agora está tudo claro: a faca ensangüentada na pequenina mão, os olhos vermelhos como duas brasas no escuro, o sorriso medonho de dentes de tubarão: isso só pode ser um demônio...

Ou... será que tenho alucinações, por causa dos ferimentos e do desespero? E logo eu, que sempre estive certa, que sempre defendi meu filho de tudo e de todos, logo eu tenho de viver a dúvida? Vivê-la logo agora, que vejo meu sangue escorrer-se, logo agora que estou morrendo?...

quinta-feira, 10 de março de 2011

Rosas

Duas coisas eram frequentemente comentadas na vizinhança sobre sua vida: como as rosas que plantava em seu jardim eram lindas apesar da terra pobre que em nada ajudava, e como sempre arrumava amantes violentos.

- Talvez as rosas sejam uma compensação que Deus lhe dá por ter de sofrer esse tipo de coisa, diziam os vizinhos quando escutavam as brigas que vinham de sua casa.

Ela, contudo, não aceitava esmola, mas sim pagamento. Pois o que eles não sabiam (embora o mencionassem como explicação absurda para aquele absurdo) era que ela escolhia a dedo os homens com quem se envolvia. Procurava sempre os piores, os mais vis, desonestos, covardes. Atraía-os para si e esperava até que chegasse o momento certo. Então punia sua violência com violência, cortando suas gargantas, perfurando seus corações, esfaqueando inúmeras vezes toda a extensão de seus corpos.

Em seguida levava seus corpos para o quintal e os enterrava. E daqueles pedaços de carne vinham o fertilizante que tornava as rosas tão fortes e o sangue que as fazia tão vermelhas.

Às vezes sentia-se cansada daquilo. Mas quando acordava pela manhã e via as pétalas vivas chorando orvalho dizia a si mesma.

- É um trato justo, Senhor.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Representação

A forma como ela entrou definitivamente no círculo importante do mundo das artes plásticas foi através da sua técnica da “pintura da realidade”. Não se sabia muito bem como, mas com pincéis e tintas aparentemente comuns, ela era capaz de pintar não telas que se configuravam como cópias perfeitas do mundo real, mas o mundo real em si.

Obviamente, seu sucesso inicial foi estrondoso. Todos queriam comprar suas telas, ou, como na verdade eram chamados, seus “objetos”. Deu inúmeras palestras e conferências ao redor do mundo, expôs nas galerias mais importantes da época, reuniu vários seguidores, discípulos, simpatizantes. A crítica especializada (e a não-especializada, embora de maneira mais simplória/menos elitista, dependendo de quem via) falava em uma “efetiva superação do modelo platônico”, num “meta-realismo”, em “anti-mímesis”. Ouviu-se em vários momentos a palavra “revolução”, mais ainda a palavra “fama”, mas foi a palavra “dinheiro”, embora pronunciada poucas vezes, que teve o maior papel nesses acontecimentos.

A revolução, contudo, não veio, e sua obra logo se tornou datada. Atualmente poucas pessoas ouviram falar nela, e, embora sua arte ainda esteja presente nos museus, nem mesmo os poucos especialistas em sua obra são capazes de não confundi-la com as demais peças do resto do acervo arqueológico.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Menino Deus

Quando Deus morreu, muitos quiseram participar do funeral, alguns para prestar sua homenagem e deixar transparecer a dor pela perda do Pai de todos nós, e outros para se certificar de que o déspota cruel e arbitrário havia realmente batido as botas e deixado a humanidade em paz.

Mas foi uma enorme surpresa para todos, fiéis e infiéis, quando, ao chegarem próximos ao caixão no qual jazia o Criador e darem um boa olhada lá dentro, perceberem que Deus, na verdade, não passava de um garotinho, desses que, mortos e com os olhos fechados, costuma-se dizer que se parecem, aqui não sem um certa ironia, com “anjinhos”.

No fim, ambos os grupos, fieis e infiéis, saíram de lá, por assim dizer, na falta de uma palavra melhor, “vazios”. Nem tanto por terem descoberto, no caso dos primeiros, de que no fim das contas nunca houve ninguém que estivesse realmente cuidando deles, e no caso dos segundos, que a culpa de todos os males do mundo não pertencia efetivamente a ninguém senão a eles mesmos, mas sim porque a morte de uma criança, seja ela um Ser supremo ou a mais comum e vulgar de todas, sempre abre uma ferida no mundo, que nada nem ninguém é capaz de curar.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Sonhador

Todos as noites eu me dedico, involuntariamente, ao mesmo sonho: sou uma espécie de burro ou asno, muito velho e muito cansado, que, após um dia cheio de maus tratos, humilhações e trabalho forçado, deito-me para sonhar que sou um homem. Acontece que, talvez por só existir dentro do sonho de um burro, eu como segundo-homem nunca tenho sonhos, já que quando vou dormir o eu-burro é acordado para mais um longo dia de trabalho, e assim fica até que vai dormir novamente ou eu-mesmo acordo, deixando tudo para trás.

O problema é que ambos os sonhos me parecem tão reais que comecei a me questionar se na verdade eu não era um dos dois sonhados, o burro ou o segundo homem; assim, resolvi descobrir do que se tratava aquilo, se eu realmente era um dos dois (o que me parecia inverossímil), ou o que os dois eram de mim. Por um apego aos clássicos que sempre uso para disfarçar minha ignorância sobre um assunto, procurei meu volume de “As obras completas” e comecei a ler A interpretação dos Sonhos.

Mas minha leitura não se estendeu por muito tempo; pois cedo percebi que eu não era nem o asno humilhado que durante as noites fugia sonhando que era homem, nem o homem idealizado, que no entanto era incapaz de sonhar, mas sim aquilo que ficou perdido entre os dois, e somente no que neles não era possuía existência.