quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O sonho mais sombrio

livremente inspirado numa peça de David Sylvian

Não acredito que demorou tão pouco tempo – tanto para que o homem conseguisse encontrar um novo lugar seguro para viver, quanto para que este novamente se destruísse.

Foi preciso viajar essa distância infinita para longe do nosso sistema solar para que pudéssemos encontrar um planeta com as condições mínimas para nossa existência – e ainda assim temos que viver debaixo dessa cúpula, tão alta e negra, como se um céu sombrio nos guardasse eternamente.

Mas mesmo diante desse sacrifício todo, a humanidade foi incapaz de aprender com seus erros; e criamos um novo motivo para que nos destruíssemos.

“Não é um novo motivo; é o mesmo, embora com uma aparência diferente” – diz ela, olhando-me num triste misto de medo e resignação. E ela tem razão: é sempre o mesmo motivo que nos destrói, aquilo que por tanto tempo fingimos não ser nosso, o nosso sonho mais sombrio.

“Tudo vai ficar bem”, minto – e a abraço forte, olhando para cima.

O céu está se partindo.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Sonhado

Desde que me lembro, nunca pude sonhar. Não sei se é uma doença, se me foi ensinado quando era criança, ou se é fruto de alguma evolução humana, dessas que nos fizeram ter menos dentes: talvez o sonhar tenha se nos tornado completamente inútil.

O fato é que meu sono, sem o sonho, é como que também ausente. Quando fecho os olhos, à noite, e os abro já de manhã, é como se nem um minuto tivesse passado; um espaço em branco no qual o tempo não consegue penetrar.

Dessa forma vivo numa existência contínua, sem nenhum intervalo do nada. Vejo tanta coisa, o tempo todo, que tudo já está embaraçado, e o que deveria ser real e nítido é para mim como uma neblina, um ar tão visível que não nos deixa ver nada.

Esse mundo embaraçado me faz perguntar se não sou somente o sonho do sonho de algum homem, que, por um limite de desdobramento, me impede de sonhar.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Dilúvio

Dizem (Ele disse) que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Não creio que isso seja verdade. Se o fosse, seríamos capazes de recriar os milagres divinos, mesmo que em escala reduzida, o que não é efetivo. Exemplifico.

Lembro-me bem do Dilúvio; Deus, entristecido com o rumo da humanidade, teve um momento de fraqueza e deixou escapar um soluço, que, embora abafado, foi incapaz de controlar uma lágrima que escorreu pelas barbas infinitas e caiu na terra, inundando o mundo.

Poucos de nós nos salvamos. Dos que escaparam às águas, muitos se foram por conta da miséria decorrente dos dias passados em meio a um inesgotável azul, sem vermelho, nem verde.

Mas a minha miséria foi ainda maior; pois, além de padecer na fome a na dor, tive de assistir ao lento morrer das pessoas que conhecia e amava.

E chorei. Por muito tempo, mesmo depois de seca aquela lágrima, divina, derramei as minhas, mortais, supostamente irmãs daquela, mas que não foram capazes de afogar nem minhas mágoas.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A revolução dos bichos

Conta-se que num futuro próximo os bichos, cansados de sua longa existência de exploração nas mãos dos homens, terão se organizado numa tentativa de revolução que demandava os direitos, agora não exclusivamente, humanos.

Assim aconteceu de nos zoológicos, nas fazendas, nas casas ou nas ruas os bichos se unificarem pela paralisação, até que suas exigências fossem cumpridas, das suas atividades, fossem estas as de entreter ou alimentar, ser amado ou maltratado.

Diante da declarada revolta dos bichos o mundo humano acabou por se atordoar, não tanto pelo medo do desastre, em termos de entretenimento, alimentação, saúde emocional e exercício de crueldade, que tal paralisação poderia ocasionar, mas mais pelo azedo incômodo que seria ter de mudar o lugar em que lenta e confortavelmente ele tratou de se acomodar.

Foi por isso que, após algumas poucas discussões jurídicas promovidas pelos fóruns internacionais, ficou decidido a inconstitucionalidade da revolução dos bichos.

O resultado disso nada teve de novo: uma repressão pacífica que começou com escudos se erguendo e terminou com os cassetes descendo.

E é por isso que num futuro não tão próximo ainda teremos coisas como bacon. Porque, desde aquele último dia de sua revolução, os bichos decidiram que, diante da inevitabilidade do golpe, melhor seria que este fosse apenas um, derradeiro.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Cavalinhos Gregos ganha prêmio literário

É isso aí pessoal: este humilde blog foi agraciado com a honra de receber o Prêmio Dionei Tavares de Literatura Fantástica (categoria blog). Fico muito feliz por ter recebido o prêmio, mesmo com tão pouco tempo de blog e com grandes intervalos entre as postagens. Agora fica uma obrigação moral de continuar produzindo e com maior frequência!

Queria agradecer a todos os que votaram no Cavalinhos Gregos e a todos os que participaram comigo aqui no blog. Em especial, queria agradecer ao amigo (irmão) Igor Martins, tanto por ter participado com bastante ânimo, quanto por ter me incentivado a inscrever o blog no prêmio. Sem ele (Igor) esta vitória não existiria.

Por último, quero agradecer a todos aqueles que acompanham este pequeno recinto do insólito e perdem seu escasso tempo lendo as fantasias que vamos criando. Muito obrigado e continuem acompanhando o Cavalinhos!

Abraços,

Lucas Antunes, fantasiando.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Pandora

Ela era tão bonita que quando surgiu todos os homens solitários se apaixonaram. Loucos, cada um tentou o que pode para conquistá-la, doando-se no que mais tinha para provar seu amor: os poetas fizeram odes, os músicos canções; os comerciantes deram-lhe o que vendiam, os ricos o que compravam; os políticos fizeram-lhe promessas, os líderes cumpriram-nas; os ladrões deram-lhe todas essas coisas, os suicidas suas vidas.

Mas dela nenhum teve resposta; e, loucos, decidiram que somente destruindo uns aos outros terminariam com aquele silêncio. Assim, os poetas fizeram troças, os músicos paródias; os comerciantes cobraram caro, os ricos pagaram em dobro; os políticos difamaram, os líderes exploraram; os ladrões tiraram-lhes tudo, os suicidas mataram-se.

Ela, contudo, assistira a toda essa desgraça calada. Podia ser que não amasse ninguém, ou que amasse a todos; podia ser que fosse muito recatada, ou tão devassa que se deliciasse com a tragédia; podia mesmo ser que fosse muda ou que tivesse gritado, chorado e implorado para que eles parassem. O fato é que jamais se saberá. Pois aquilo que sem querer abrira no coração dos homens era tão podre que lhes devorara todos os sentidos.

sábado, 2 de outubro de 2010

Clube da Utopia

Foi por um acaso que eu o achei, quando entrei, procurando fugir do calor, em um pequeno boteco no centro da cidade pra tomar uma coca. Caminhei até o balcão e pedi o refrigerante, que veio servido num porta-copos que julguei esquisito. Olhando-o melhor, vi que se tratava de um porta-copos muito mais requintado que o lugar supostamente teria, com o desenho de uma ilha pintado em aquarela, e, bordado em letras elegantes, as palavras “Clube da Utopia”.

Intrigado com aquilo, resolvi observar melhor o ambiente, e, para minha surpresa, vi os maiores líderes mundiais reunidos naquele boteco velho. Bebendo e fumando preciosidades, eles discutiam como cada um gostaria de ver seu país: um dizia que queria que lá só houvesse brancos; outro, que a industrialização chegasse a todos os setores; alguém disse que queria festa o ano inteiro; seu interlocutor, torcendo o nariz, queria que o cristianismo fosse levado a sério. Cada um construía sua utopia própria e imaginária, sem levar muito em conta qualquer maneira de torná-la real.

Após um tempo, finalmente notaram-me, e, vendo um novato, ficaram curiosos em saber minha utopia pessoal. Disse-lhes que era básica, uma sociedade justa, pacífica e igualitária, onde todos pudessem ser felizes de verdade. A resposta deles foi um olhar incrédulo, como se não conseguissem meu raciocínio; concluí perguntando, ora, não é esse o propósito da utopia original? Dessa vez os olhares ficaram neles mesmos, constrangidos, mas logo alguém pigarreou e a conversa voltou ao princípio.

Voltei alguns dias depois ao mesmo boteco, mas os líderes não estavam mais lá; acredito que o Clube não possua sede fixa. Contudo, minha coca foi servida num daqueles porta-copos esquisitos, só que um pouco diferente: a pintura da ilha era a mesma, o bordado agora dizia “Clube da Egotopia”.