domingo, 16 de maio de 2010

O homem transparente

A primeira atitude que tomaram quando se notou que ele começava a ficar transparente foi tirá-lo do cargo de chefe de relações públicas. Não era mais cabível que alguém no seu estado atual continuasse a lidar com pessoas, e em seu lugar colocaram uma jovem executiva que brilhava em todas as tonalidades possíveis. Mas, talvez por acreditarem no seu potencial como funcionário, não foi despedido, apenas transferido para um setor mais impessoal, revisando papéis numa sala escondida aonde pouca gente ia. Tudo bem, ele pensava, assim que eu melhorar, poderei voltar ao cargo que é meu por direito.

Mas para seu desgosto, a situação só se agravava. Conforme passava o tempo ele ia ficando mais translúcido, como se virasse um fantasma que luta pra ser notado pelos entes queridos. Certa vez ele se olhou no espelho e se reconheceu, mas não se viu.

Um dia perceberam que ele não havia ido trabalhar, o que era estranho para um funcionário responsável como ele. Ligaram para sua família, mas de lá informaram que ele não tinha voltado para casa após o expediente.

Ou talvez ele tenha voltado, e continue trabalhando e pagando as contas de casa como sempre fez, porém ninguém consegue notar. Mas isso não há como se saber.

domingo, 9 de maio de 2010

Amor tantalônico

Tântalo foi aquele cara condenado por Zeus a ficar em um pequeno poço por toda a eternidade passando fome e sede. Sempre em pé, tentava tomar a água que lhe batia no queixo, mas ela escoava; tentava pegar os frutos ao alcance de seu braço, mas o vento afastava-os. A eternidade é muito tempo, por isso ele foi liberto do flagelo. Magro e desidratado, foi acolhido por um Velho e por sua Bela Filha.

Após tanto tempo sofrendo, aprendeu que não podia ter tudo o que queria. Contentava-se com o pouco que lhe era oferecido. A sopa vinha sem carne, o pão era duro, o copo com água tinha restos de Nescau.

A Bela Filha apaixonou-se por ele, um semi-Deus, ex-predileto dos deuses, porém entendeu que não merecia ser correspondida.

Hoje, Tântalo não é mais rei, e namora a Rosângela, uma garota feia e sem atrativos, porque tem medo de ficar sozinho.

Do grande Igor F. Martins, crítico literário desempregado e escritor ninja.

domingo, 2 de maio de 2010

Dragões

Eu costumava sonhar pequenos dragões todas as noites. Nos meus sonhos eles eram de todos os tamanhos, formas e cores, voando e soprando fogo de um lado para o outro como se brincassem de fazer espetáculos de piruetas pirotécnicas, algo meio circense, meio conto de fadas.

Mas quando eu prestava atenção nos rostos deles, sentia um calafrio que me deixava nervoso, pois todos ostentavam um sorriso de ironia maligna. E quando percebiam minha inquietação davam pra gargalhar perversamente, girando no ar em meio a um caos de fogo.

Certa noite um desses dragões escapou do meu sonho e, rindo maldosamente, colocou fogo em minha casa. Ainda consegui escapar do incêndio com vida, mas perdi tudo o que havia conseguido juntar em todos esses anos.

Hoje em dia eu já consigo dormir a noite toda, mas, por medo dos dragões, deixei os sonhos para trás.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

A menina de um olho só

Ela nascera apenas com um olho só, filha de uma árvore com uma pedra. Herdou da mãe a paciência e do pai a dureza.Aprendeu a falar com um ano de idade, aos dois anos de idade falava oito línguas e descobriu que era a reencarnação de Guimarães Rosa, aos três anos de idade foi agraciada com uma cadeira na academia brasileira de letras tornando-se uma imortal, substituiu Paulo Coelho que renegou a literatura e abriu uma loja de conveniência na Rússia. Além dos seus dotes lingüísticos e literários era uma profunda conhecedora da vida provando que para melhor enxergar bastava um olho só e com isso atraindo multidões que vinham lhe pedir conselhos de todas as partes do globo terrestre e ás vezes alguns visitantes interplanetários também marcavam presença. Aos sete anos de idade teve uma crise existencial e decidiu ir meditar no morro do alemão ao som de balas e pagodes, um ano depois alcançou a iluminação, arrancou o único olho com o qual nascera e o jogou na Baía de Guanabara, seu gesto de revolta nunca foi esquecido e ergueram no corcovado um monumento a menina de um olho só, onde milhares de pessoas vão todos os anos pedir uma graça ou uma iluminação.

Fim

De Clovis

terça-feira, 20 de abril de 2010

A revolução dos vivos

Num futuro próximo a ideologia terá tomado tamanha proporção e de tal forma convertido os fatos históricos em fatos naturais, que a ação revolucionária por excelência será uma recusa da própria natureza no que nela há de mais inevitável: a morte. Assim, várias pessoas que lutavam contra a ordem vigente do mundo simplesmente pararam de morrer.

Não demoraram para serem tachados de subversivos, e o discurso oficial pregou que ser imortal era ser contra o Estado. A imprensa, tentando colocar o povo contra os revolucionários, produziu uma série de reportagens que denunciava a falta de caráter destes. Criou-se um slogan: Imortalidade é imoralidade.

Apesar de tudo, o movimento não cessou, e pouco a pouco mais pessoas iam se juntando ao grupo, de modo que em algum tempo, finalmente conseguiram eleger um candidato do PI (Partido dos Imortais) a um cargo importante do governo, cheio de promessas de mudança.

E com ele, mais tarde, chegaram outros. Muitos outros. As mudanças prometidas, contudo, jamais chegaram.

Um dia descobriu-se que o líder do partido tinha câncer de estômago. Morreu em menos de dois meses depois de receber a notícia.

domingo, 11 de abril de 2010

BBO – Big Brother Olimpo

A TV, visionária, resolveu fazer um desses reality shows onde trancam um grupo de personalidades numa casa, mas com um grupo diferente: somente criaturas mitológicas gregas. Foram, assim, convidados Hercules, Afrodite, Pégasus, Medusa, Aquiles, Apolo, Helena, Esfinge e Tirésias. Começado o jogo o público foi tratando de eliminar os que menos gostava. Pégasus saiu logo porque ficava, por assim dizer, o tempo todo com cara de cavalo. Esfinge foi a segunda, ninguém entendia nada do que ela dizia. Atenas e Apolo não conquistaram o público por serem considerados “metidos” demais. Tirésias trouxe pra si o apoio da comunidade GLTS, mas a maioria preconceituosa o eliminou. Aquiles teve um romance com Helena, apesar de a moça namorar um rapaz que sacrificara a pátria pelo seu amor, o que causou revolta no público que tratou de tirá-los logo que pôde. Na final sobraram os sarados Hercules e Afrodite e a feiosa Medusa, que por sinal acabou levando o prêmio. Isso porque, apesar de ser uma górgona antipática e desagradável, a produção do programa, cortando cenas aqui e editando acontecimentos ali, pintou-a como a mais justa e honesta de todos os participantes. O motivo era simples: apesar dos seus inúmeros defeitos, quando ela aparecia, o público simplesmente ficava petrificado em frente a TV.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Ao nascer do sol

O Homem dirigia rapidamente, pois tinha pressa de chegar ao pequeno sítio. Ele e sua família viveram os melhores momentos de suas vidas naquelas terras, e, portanto, não havia lugar melhor no mundo para descansar pelo resto da eternidade. Iam com o Homem no carro sua mulher e seus dois filhos pequenos, todos mortos. Mortos pelo Monstro, que agora deveria pagar pelo que fizera. Por isso o Homem dirigia tão rapidamente: para cumprir sua ansiada vingança.

O Homem tinha consciência de que o Monstro só fizera o que fizera porque não podia controlar sua imensa fome, e que tentara com todas as forças ser um humano. Mas não era o bastante; o Monstro deveria morrer, para que isso jamais se repetisse. E ao Homem cabia o papel de aplicar-lhe a justa sentença.

O Homem enterrou sua família logo que chegou ao sítio. Em seguida, foi até sua árvore favorita, arrancou-lhe um galho pontiagudo e se deitou, olhando para o oriente. Com uma força sobrenatural enfiou o galho no peito e, paralisado, esperou o nascer do sol que, junto com um novo dia, traria a sua ansiada vingança, sua justa sentença.