sábado, 29 de setembro de 2012

Equação


Joaquín Gómez era um grande matemático. E como todo grande matemático, era também um filósofo. Consequentemente, o que Gómez, no fim, buscava, era uma forma de transcendência, que, devido talvez à influência do catolicismo (sempre ele), equivalia, para nosso matemático, à felicidade da raça humana.

Assim, Gómez dedicou grande parte de sua atividade intelectual a encontrar um caminho definitivo para a evolução da humanidade. Este só poderia ser descrito, afinal, através da linguagem matemática, a única que não permitiria dubiedade.

Cabe aqui, para não enganar o leitor, um esclarecimento de ordem cronológica: Gómez era um contemporâneo nosso, um “filho do século XXI”, se é que tal coisa existe.

De modo que o pensamento de Gómez é uma resposta consciente a esse caldeirão fumegante de incertezas no qual cozinhamos. Essa consciência é notável no método do matemático.

A partir de uma longa e minuciosa pesquisa em inúmeros tratados de antropologia e filosofia, Gómez pôde chegar um número de valores privilegiados e negados pela humanidade de maneira geral. Transformados em elementos, tais valores puderam ser organizados na forma de uma equação cuja raiz equivalia à felicidade eterna do ser humano.

Intitulado “O Teorema do Progresso” (El Teorema del Progreso), o tratado de Gómez que apresenta essa equação é uma obra-prima das ciências humanas, matemáticas e da filosofia. Contudo, as editoras não pensaram assim. As universitárias acharam a obra de Gómez uma “brincadeira positivista de mau-gosto”; as comerciais nem se deram ao trabalho de responder.

Sem possibilidades de bancar ele mesmo uma edição, e intentando atingir um público maior, sobrou a Gómez publicar sua obra no formato de um blog. Atualmente, contudo, o link para a página está quebrado. Gómez desapareceu, sua obra não pode ser mais lida, e a humanidade segue seu próprio caminho, em direção a um abismo qualquer.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Spam



Já faz algum tempo que o recebi por e-mail de alguma amizade ou ex-amizade; não me lembro bem. Sei que, como a mensagem parecia confiável, deixei-o entrar, e só o percebi quando era tarde. Quando me dei conta, tentei deletá-lo imediatamente; mas fui surpreendido com seu apelo de que não o matasse. Aquilo, como não poderia deixar de ser, me comoveu; e é por isso que ele até hoje está aqui.

Seu humor reúne aqueles três atributos que, combinados, tornam qualquer um insuportável: ironia, sarcasmo e cinismo. Mas, talvez devido a sua dimensão (tem só alguns bytes), eu geralmente o acho divertido; ele me lembra Woody Allen.

Sua brincadeira favorita é a ameaça, e gosta de dizer que vai “escancarar minha privacidade”. Não sou uma pessoa de segredos, mas não gosto que leiam minha literatura (acho-a muito ruim). Quando ele se aproxima da pasta “Obras”, faço cara feia e ele recua deixando escapar um sorrisinho que é como um lag, e que me faz estremecer.

Pensei em chamá-lo Odradek, mas depois percebi que seria despropositado. Não o chamo nada e ele vem quando quer.

Três ou quatro vezes sonhei que ele escapava da tela e vinha até meu quarto onde eu, efetivamente, dormia. Carregava, de alguma forma, uma faca. Ou talvez fosse um estilete. Não me fazia mal, mas me espiava por horas a fio, respirando calmamente, como quem observa a paisagem correndo pela janela de um trem.

Sei que é mau e que me odeia; no fundo, também o detesto. Mas o suporto por saber que posso me livrar dele quando quiser. Ele também tem consciência desse fato, mas, desde seu apelo inicial, não tocamos no assunto. Pergunto-me se essa situação é certa. Mas sei que é a única forma para que ambos possamos continuar existindo.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

H. P. Lovecraft



Entender verdadeiramente a obra de um autor requer uma chave muitas vezes encoberta pela própria obra; é o que acontece com H. P. Lovecraft. Textos como The Call of Cthulhu e Supernatural Horror in Literature brilharam tanto em sua grandeza que ofuscaram os dois textos seminais da obra do escritor: Pickman’s Model e Notes on Writing Weird Fiction.

O que talvez tenha dificultado o reconhecimento da importância desses textos foi a incapacidade, por parte dos leitores de Lovecraft, de considera-los em conjunto, atentando assim para seus detalhes mais importantes. Vejamos: Notes..., um texto crítico, parece uma espécie de manual de como escrever contos fantásticos.  Principal argumento: o elemento vital de um conto fantástico não é seu enredo, mas sim a atmosfera criada pelo narrador. Ou seja, a qualidade do conto se deve mais a uma questão de técnica do que de imaginação.

Pickman’s Model conta a história de um homem profundamente abalado pelas sinistras telas de um exímio pintor: Pickman. Suas telas, extremamente realistas, versam sobre monstros horríveis. Contudo, não é a temática das obras que desestabiliza o narrador, mas sim a incrível técnica de Pickman; o realismo de suas telas se deve ao fato de que se utilizava de modelos reais – monstros reais.

As mãos do leitor atento começam a tremer, intuindo aonde quero chegar: a excelência da obra do autor norte-americano é fruto dos modelos que ele – assim como Pickman – tinha à disposição. O fato de que Lovecraft tivera diversas crises nervosas durante sua vida adquire extrema relevância: como mostra sua literatura, o conhecimento do horror conduz à loucura. “Mas isso é biografismo”, argumenta o leitor inquieto. Melhor assim. Dormirá melhor ao fingir ignorar que, na submersa cidade de R'lyeh, o grande Cthulhu espera, dormindo, o dia em que acordará para destruir a humanidade.

domingo, 19 de agosto de 2012

Um ignorado milagre


No ano de 1953, na sertaneja vila de Taperinha, o padre Damião Queiroz da Fonseca chamou a atenção por ter desenvolvido nas costas, de repente, um belo par de asas brancas.

Sendo padre, a associação com os anjos foi instantânea, e o milagre espalhado por todo o sertão. A notícia chegou ao bispo de Petrolina, que, concomitantemente maravilhado e desconfiado (ossos do ofício), decidiu verificar pessoalmente o ocorrido.

Lá, o Bispo pôde contemplar o milagre aplumado do padre Damião, inquirindo-lhe a atitude que lhe dera tal graça. Nada, sorriu tímido o padre, e o Bispo reconheceu na humildade do pároco, bem como no atrofiamento de seus braços, a prova definitiva de que se deparava com um santo[1].

O vaticano, contudo, não considerou a narrativa do Bispo uma prova tão definitiva assim, receitando cuidado antes de assumir a santificação. Disse ao Bispo que aguardasse, pois logo chegaria um representante para averiguar o caso.

Enquanto isso, padre Damião ia mudando. Sumiram os braços, as pernas arquejaram, o tronco inclinou-se, o peito estufou, os olhos abobalharam, e, finalmente, nasceu-lhe penas pelo corpo e um bico na cara bem a tempo de receber o visitante romano. Este, embora admirado com o pombo gigante, disse que não podia canoniza-lo: “Santos são apenas homens, não bichos”[2].

O Bispo ainda procurou atentar para o milagre do padre que se tornara manifestação do Espírito Santo, mas o fato é que se tornou insuportável a sujeira e os arrulhos monumentais produzidos pelo ex-padre. Assim, Taperinha aproveitou bastante a tranquilidade depois de finalmente se livrar do seu milagre.


[1] Segundo o Bispo, diminuição dos braços do padre era um sinal do toque da divindade uma vez que este “ficaria livre de tocar com as mãos nas impurezas do mundo material” (VENÂNCIO, Gilmar. História da Diocese de Petrolina).
[2] Idem, Ibidem.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Perpetuum Mobile




Apenas no século XXI foi criada a primeira máquina automática de criar relatos. Seu funcionamento era simples: a partir de uma base primária de narrativas orais recolhidas aleatoriamente (por exemplo, conversas de mesa de bar, historias de pequenos acidentes, depoimentos de testemunhas em estabelecimentos jurídicos, antigos casos amorosos, anamneses médicas, etc.), a máquina era capaz de recombinar trechos dessas narrativas e criar novos relatos de maneira completamente independente.

Contudo, para o próprio espanto de seu criador (um engenheiro alemão chamado Bertolt Gumbrecht), máquina automática de criar relatos passou a incorporar suas próprias criações como componentes de sua base primordial. Alimentada pela própria voz que produzia, a máquina passou a criar histórias independentes da realidade que a circundava, passando ao mesmo tempo a negá-la e a reforçá-la muitas vezes na mesma narrativa contada.

Assim, como o passar do tempo, as narrativas da máquina automática de criar relatos desenvolveram-se paralelamente à história humana, embora uma ocasionalmente antecipasse ou recontasse a outra. Exemplo: em 2262, a máquina criou o relato de um certo engenheiro alemão chamado Bertolt Brecht, inventor de uma máquina automática de criar relatos. A coincidência com a história, contudo, chamou menos atenção do que o “erro” no nome do personagem. Se a máquina produzia narrativas aleatórias ininterruptas, não seria improvável que um dia ela acabaria contando seu próprio nascimento. O “erro”, por outro lado, não deixava de sugerir certa ironia impossível para uma máquina – a não ser, sugeriam os mais misteriosos, que algum tipo de consciência houvesse brotado daquele emaranhado de relatos.

Num futuro mais distante, por qualquer uma das inúmeras razões possíveis, a humanidade acabará consigo mesma. Sobrará, contudo, protegida debaixo dos escombros da civilização, a máquina automática de contar relatos, ainda a criar histórias, a promessa passada de que um dia andamos por sobre a superfície da terra.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Continuidade dos parques


Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à chácara; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns aluguéis, voltou ao livro com a tranqüilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir
descolando-se  linha a linha daquilo que o rodeava e de sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a  palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do monte.

Antes entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara machucada pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela fazia estalar o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e por baixo gritava a liberdade refugiada. Um diálogo desejante corria pelas páginas como riacho de serpentes e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como que querendo retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo  repasso sem dó nem piedade interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Começava a anoitecer.

Já sem se olharem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Da direção oposta ele virou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu, por sua vez, apoiando -se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O  mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam -lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma galeria, uma escada carpetada. No
alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

Participação especial do meu amigo Julio Cortázar. (A tradução não é minha)


quinta-feira, 31 de maio de 2012

Formador


O primeiro grande desejo de Adam Silverman foi ser enciclopedista. Maravilhado, segundo ele mesmo, desde pequeno com a vasta biblioteca paterna, sonhava em reunir tudo o que descobria naquele universo de palavras num só local, compartilhando com os outros sua própria euforia da revelação. As enciclopédias, contudo, já existiam.
Anos mais tarde Silverman doutora-se em filosofia e passa a dar aulas em uma universidade. Mais preocupado com a possibilidade de levar seus alunos a aprenderem a pensar do que com a “produção intelectual” propriamente dita, Silverman ainda segue os propósitos da juventude. Entretanto, a pressão por parte de seus colegas de departamento e o desinteresse generalizado dos alunos o levam a abandonar a carreira. Some por algum tempo.
Volta com um novo projeto: a montagem de grandes obras em formas de musicais que são exibidos na Broadway. Sua estreia, com uma versão das Confissões de Agostinho, é um grande sucesso de público e crítica. A partir daí, faz várias adaptações aclamadas, a mais famosa provavelmente a de Discurso do método, que inclusive contou com Jude Law no papel do Cogito. Acredita finalmente ter alcançado seu objetivo.
Seu sucesso é destruído após uma ousada montagem do Alcorão, que, auxiliado pelo clima político, desperta ódio em diversos setores. Sofre um atentado que quase tira sua vida (cuja autoria foi assumida por um grupo xiita) e pouco depois é processado por anti-semitismo, apesar da sua ascendência hebraica.
Nunca mais realiza montagens. No entanto, segundo revelaram alguns amigos mais próximos, está trabalhando numa versão pornográfica de Ser e Tempo, que deverá estrear ano que vem.