domingo, 29 de maio de 2011

Jogo

Eu e meu amigo Igor iniciamos há algum tempo uma espécie de jogo, com o objetivo de produzir textos para o Cavalinhos: um de nós dois começaria um conto, que seria enviado ao outro para que desse continuação, retornando em seguida ao primeiro e assim sucessivamente, até que tivéssemos um texto completo, sendo a intervenção no texto alheio permitida.

Em pouco tempo terminamos um conto, bastante vulgar (misturava, salvo engano, mitologia, horror e crítica social). Mas antes que concordássemos por uma versão definitiva, um de nós (não lembro quem) resolveu incluir, jocosamente (acredito), um comentário do narrador que resumia, criticamente, o próprio conto. Ato contínuo, o outro incluiu ao comentário uma comparação com outro autor, provavelmente Lovecraft. A resposta veio em forma de uma alteração do texto que o afastava do autor comparado, resultando numa segunda crítica por parte do narrador, reinterpretando o conto.

A partir daí seguiram-se uma série de alterações no conto, que incluíam mudanças no enredo, comparações com outros autores, comentários metaficcionais, sobre os outros autores, referências a textos anteriores e futuros do Cavalinhos, bem como a textos não literários e/ou a acontecimentos que iluminavam (ou não) o conto, e explicações sobre o funcionamento do jogo, que alertavam para a necessidade ou incoerência de uma ou outra alteração.

Não fosse isso o bastante para tornar nosso projeto inicial uma imensa confusão, somou-se o fato de que cada um de nós passou a enviar diversas versões do texto para o outro, muitas vezes copiando seu estilo, ou sem nenhuma alteração, de modo a parecer, por exemplo, que eu havia escrito algo que na verdade havia sido escrito pelo meu amigo. Assim, por mais absurdo que possa parecer, esta é uma das versões de nosso conto; e já não sei dizer se quem a escreve sou eu ou Igor.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Ouroboros

Em 1672 foi publicada a obra do humanista Giovanni Feliciano, De Urobori Interpretatio, na qual o sábio se dedica a encontrar o significado divino do ouroboros, a serpente alada que devora a si mesma. Feliciano parte da interpretação clássica que via na imagem uma representação da infinitude, passando por aquela que privilegia a ação da passagem do tempo sobre o mundo, para daí chegar à conclusão de que o ouroboros representa a pura destruição das coisas, e, consequentemente, o Caos.

A obra exerceu enorme influência nos místicos de sua época, chegando mesmo a fomentar o nascimento de uma ordem totalmente consagrada ao hieróglifo, a Ordem dos Ouroboristas, que se dedicava unicamente, através de procedimentos mágicos, a promover o caos e a destruição das instituições do mundo. Contudo, logo perceberam que os procedimentos adotados não exibiam resultados satisfatórios, e decidiram tomar ações, por assim dizer, mais pragmáticas.

O resultado disso, embora bastante conhecido, é muito pouco reconhecido, já que suas evidências são muito bem camufladas. Por exemplo, sabe-se que Robespierre era um ouroborista, bem como Napoleão. Antes da suástica, o símbolo oficial do nazismo era o ouroboros. Derrida tinha uma primeira edição de De Urobori Interpretatio em sua biblioteca. Em um desses noticiários policiais popularescos, o repórter que entrevistava um estrangulador em série obteve como única resposta a exibição de um ouroboros tatuado.

Pode-se pensar que os ouroboristas fazem de tudo para esconder sua existência e suas intenções. Isso, obviamente, não passa de um erro grosseiro. Aos ouroboristas não interessa o mistério, tampouco a exibição; tudo o que eles buscam é o Caos, puro e destruidor. Por exemplo, você deve ter vindo até aqui esperando encontrar um texto ficcional; eu, no entanto, digo que tudo o que você acabou de ler é a pura verdade. Pronto: o Caos está lançado.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Biografia pequena de Rodolfo Párrega – (Perspectiva)

Rodolfo Vicente dos Santos Párrega nasceu no dia 15 de outubro de 1965, em São Bernardo, SP. Aos três anos já havia lido toda a obra de Marx, Engels, Lênin e Tsé-tung, a maioria em francês e alemão. Em 69, diante da impossibilidade de lutar contra a repressão com os artigos que escrevia para vários jornais de São Paulo e do Rio, entrou para a luta armada.

Entre 69 e 71, participou de diversos assaltos a bancos, ataques a aeroportos, seqüestro de figuras importantes, e atentados a líderes militares, até que seu grupo foi descoberto pela polícia psiônica. Acabou preso, torturado e deportado para a Inglaterra, onde escreveu seu primeiro romance, Terra usurpada, amplamente elogiado pela crítica contemporânea.

Em 72, com sete anos, mudou-se para França e fundou um terreiro de candomblé, tornando-se pai-de-santo. Iniciou um romance com Anaele Zekri, ex-guerrilheiro argelino, e publicou Terreiro vermelho, seu romance de maior sucesso. Em 1973 Zekri foi espancado e morto por um grupo racista extremista, e Párrega publica o drama em dois atos Ódio ódio ódio.

Alguns meses depois, aos 8 anos, Rodolfo Párrega comete suicídio tomando um vidro inteiro de comprimidos para dormir. Ao invés de uma carta, deixa escrita apenas uma pequena nota: “Se realmente houvesse algo que valesse a pena ser dito, não haveria necessidade de dizê-lo”

Hoje em dia sua obra ainda é razoavelmente estudada, principalmente pelos especialistas dos cultural e genre studies. Outros, contudo, consideram sua produção datada e em vias de entrar no absoluto ostracismo, acusando seus defensores de promovê-la por puro interesse ideológico, e etc., etc., etc.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Companhia II

Também não me lembro há quanto tempo estamos juntos; minha memória está cada vez pior. Contudo, julgo isso seja algo natural para quem se encontra na minha situação.

Confesso que no início eu dependia muito mais dele do que ele dependia de mim. Mas entendam: fiquei muito tempo na solidão, sem qualquer tipo de contato com outras pessoas, e aquilo estava me matando (sem sarcasmo). Foi nessa época que o encontrei, ou que ele me encontrou, ou talvez: que nos encontramos.

Desde então não nos separamos mais. Por nada. Não que eu ache isso ruim, mas não sei como ele consegue. Há muito tempo que perdi o pudor (suponho que essa seja outra conseqüência natural), mas ele... Bem, ele também é humano, não é? Mas mesmo assim insiste, de um modo ou de outro. Às vezes diz “dá um tempo!” enquanto se afasta, e eu vou deixando, pois ainda entendo essas coisas. Mas quando está quase indo embora, olha discretamente pra trás, e eu suspiro e o sigo, fingindo, para evitar constrangimentos, que sou quem implora por companhia.

Eu morri, mas não sei o que há do outro lado. Tudo por causa do medo. Não do meu, que, como tudo o que é individual, vai se escorrendo depois que se morre; mas daquele que ele compartilha comigo, junto com todo o resto, pro bem e pro mal.

domingo, 24 de abril de 2011

Companhia

Ele sempre está ao meu lado, onde quer que eu vá. A nossa união é umbilical, só eu o conheço profundamente, e ele a mim, de modo que outras pessoas o ignoram. Elas têm o delas também, mas nossa incapacidade de realmente ver as pessoas torna difícil percebê-lo.

Não adianta pedir pra ele dar um tempo, pra que eu possa passear sozinho, ir na padaria, ir a uma festa, ele não cede, e diz que não pode viver sem mim. Tenho o coração mole, e consinto. Talvez ele precise mais de mim do que eu dele.

Será que devo me livrar dele? É uma parte importante de mim, e sem ele eu não sou completo. Está certo que ele assusta um pouco quem eu deixo vê-lo, mas não quero medrosos à minha volta. Nem é tão assustador assim.

Não sei quando eu percebi a presença do fantasma, acho que ele sempre esteve ali.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Zumbi

Eu sempre achei que essa coisa de zumbi fosse uma metáfora. Mas nunca pensei nisso como uma ideia original, pelo contrário. Pra mim sempre pareceu óbvio a relação dos mortos-vivos comedores de cérebro, que vivem em função da fome, sem mente, sem raciocínio, transferindo sua doença para outros seres humanos sadios através de uma mordida violenta, com o “contexto do capitalismo atual”, o “consumismo descontrolado”, a “burrice generalizada”, essa porra toda. E pra quem ainda duvidava, aquele filme lá do Romero deixava isso absolutamente claro.

De modo que a idéia da metáfora zumbi era pra mim senso comum. Claro que agora sei que não é bem assim. Eu mesmo me tornei um zumbi há uns tempos atrás, depois de ter sido mordido na canela por um mendigo bêbado (por ter me recusado a lhe dar esmola). Agora sou obrigado a comer carne humana para sobreviver, sou incapaz de me recuperar de ferimentos (esse problema é especialmente desagradável), e um dia desses transformei um estudante adolescente (mordi o safado quando tentou me assaltar, com um canivete!). Claro, ainda mantive meu “intelecto”. Mas alguma coisa tinha de ser lenda, né?

Então ficou óbvio que não existe merda de metáfora alguma. A coisa é realmente como diziam. Acho que é por isso que as perguntas que me faço a respeito de minha situação nunca têm nada a ver com “questões filosóficas”, tipo “o que é a morte?”, ou onde “está deus agora?”, ou “o que define o ser humano?”. A pergunta que sempre me faço é: será que minha vida realmente mudou tanto?

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ditadura

Naquele tempo os subversivos tinham muito medo dos infiltrados; mas isso somente porque eles não sabiam da existência da polícia psiônica.

Éramos peritos em certos tipos de habilidades como leitura de mentes, rastreamento psíquico, previsão do futuro, essas coisas. Uma operação bem organizada era capaz de detectar um grupo revolucionário, apreender seus planos e localizar sua sede em um pouco mais de uma semana, tempo impossível para qualquer polícia secreta. De modo que posso dizer sem exagero que fomos peça-chave para o sustento do estado de exceção por tanto tempo.

Nossa eficiência não permitiria jamais deixar de localizar um subversivo no centro da minha própria família.

Mas meu filho era, afinal, meu filho; e mesmo com uma série de golpes mentais e invasões telepáticas, não nos foi possível descobrir o núcleo de seu grupo paramilitar. Assim, foi preciso partir para a tortura física, até que sua mente ficasse enfraquecida o bastante para conseguirmos extrair a informação necessária.

Não lembro que desculpa dei (ou deram) à minha mulher. Só lembro que quando tudo aquilo acabou e voltei para casa, tentei chorar, mas não pude.

Hoje entendo que uma ditadura não tem a ver com sombras, silêncios, ou medo; uma ditadura é poder saber o que há de mais profundo e escondido nos outros, mas, quando olhar e procurar lá no fundo si mesmo, não encontrar nada além de um monte imenso, doente e pútrido, de vazio.