domingo, 27 de abril de 2014

O anjo


O anjo Elzevar está desocupado, a única coisa que sabe fazer é levar mensagens mas não há mais mensagens para levar, e assim o anjo dá voltas remexendo no lixo do grande lixeiro municipal em busca de restos de comida e sobras de frutas: precisa comer algo. De noite fez o teste de percorrer a margem do rio como prostituto faz-tudo, e, de fato, sabe fazer muitas coisas e sua condição angélica o exime de qualquer escrúpulo moral; mas na maioria das vezes o encontro termina mal, por exemplo quando o cliente, antes ou depois, descobre que Elzevar não possui sexo: ao que lhe parece, em algumas ocupações o sexo é particularmente requerido, até mesmo indispensável. Para aplacar o cliente desiludido, Elzevar o mostra um pouco como voa, primeiro à direita, depois à esquerda, depois passa sobre sua cabeça e bagunça seus cabelos com uma rápida brisa; mas os clientes da margem do rio exigem algo de mais concreto do que uma exibição de levitação; um mordeu seu tornozelo em pleno voo, outro calvo e com peruca o chamou de sodomita e um terceiro o denunciou à polícia, baseado num artigo do Código Penal que proíbe exaltar a sedução e outros dois artigos do Código de Navegação Aérea relativos ao voo urbano sem documentos. Depois disso Elzevar teve de se mudar para outra curva do rio, perigosamente frequentada por famílias e pescadores com varas, inclusive de noite.

Esses inconvenientes, consequências naturais de sua desocupação temporária, não podem preocupar verdadeiramente um anjo. Para começar os anjos são imortais, e são poucos os mortais que podem dizer o mesmo. E quanto à falta das mensagens, um dia ou outro isso terá de acabar. Novos emissores estão se alistando, e os potenciais receptores com certeza não são escassos. Já no passado aconteceu-lhe de ficar sem trabalho por períodos maiores ou menores, sem fazer nada. Restos de comida nunca lhe faltaram; é verdade que a prostituição angelical já não é o que costumava ser, mas de qualquer maneira, até que esteja pronta a nova mensagem, seguirá com o contato com os homens. Enquanto isso Elzevar sempre pode encontrar um trabalho num circo, embora lamentavelmente muitas coisas tenham mudado desde que existe a televisão. Se o Grande Silêncio durar muito, outros caminhos interessantes e pouco percorridos serão abertos: por exemplo, o cinema underground, a aplicação de antiparasitários, a manutenção de computadores, a limpeza de elevadores e os desfiles masculinos de moda. 

Juan R. Wilcock

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Espelhos


Ao amigo Igor 

Há uma sentença de um heresiarca de Uqbar que diz: “os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número de homens”. Esse é o único dogma de nossa Ordem.

Somos unidos apenas por um voto e uma missão. O primeiro é a castidade; a segunda é a busca e destruição de certos espelhos especiais. Porque apenas alguns espelhos são efetivamente capazes de multiplicar o número dos homens: eles criam novos universos, por meio de um reflexo deformado de nosso próprio mundo.

É possível que o acaso seja regido por uma força maior, como uma loteria mística; em todo caso, nunca sabemos quando seremos sorteados, nem qual será o prêmio. Aquele deveria ser apenas mais um dos odiosos espelhos, idêntico às dezenas que já destruí. Mas ao olhar para o outro lado, tudo mudaria.

De início, pensei ver uma versão mais nova de mim mesmo; mas logo percebi que se tratava na verdade de um filho que eu não tinha. Ele era, portanto, o fruto dos dois maiores Pecados; e, no entanto, após olhar seu rosto – uma mistura de mim mesmo com o infinito – soube logo que faria tudo por ele, qualquer coisa para protegê-lo. Deixei o espelho intacto e fui embora.

Há uma felicidade estranha em pensar no meu filho – esteja ele onde estiver. Mas um dos meus pensamentos mais prazerosos é imaginar se um dia ele também encontrará um espelho que o leve a ver seu próprio filho; e se este também encontrará outro espelho que o permita ver seu filho, e assim por diante, até o fim dos tempos – ou dos espelhos. Penso e sorrio, sabendo que isso é o mais próximo que chegarei da imortalidade.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Cérbero


Seguro a maçaneta e respiro bem fundo, preparando-me. Abro a porta: o cheiro é péssimo. Embora seja de manha, tudo é escuridão. O interruptor não funciona; acho que cortaram a energia. Noto que as janelas estão cobertas com folhas de papel coladas; arranco algumas, deixando a luz fazer o ser papel. No chão, roupas sujas, revistas velhas, garrafas vazias e marmitas com resto de comida estragada. Mas só começo a suar frio ao ver as seringas espalhadas.

Vou até o quarto. Há jornais na janela aqui também, e as sombras são quase uma massa só. Uma delas, contudo, se destaca; está jogada sobre algo que deve ser um colchão velho. Sei quem é: reconheceria meu filho em qualquer lugar, mesmo aqui, neste inferno. Ajoelho-me ao seu lado, tento ver se ele está respirando (eu não respiro). Ele volta a cabeça para mim e me olha nos olhos, mas não me reconhece.

É só quando tenho certeza de que a ambulância está vindo que abraço meu filho e choro. Ele está bem. Está doente, está quebrado, mas está vivo.

O som de latidos me desperta; ainda estou segurando a maçaneta. Olho para o lado e vejo a origem do barulho: um cão negro de três cabeças me encara com olhos de ferrugem. As visão deveria me causar horror, mas em vez disso me enche de tristeza; pois nesse momento me dou conta de que de fato estou diante da porta do Hades, do submundo, do inferno, e, inevitavelmente, surge a lembrança daquele aviso do poeta florentino: “deixai toda a esperança, ó vós que entrais”.


Respiro fundo e giro a maçaneta, sabendo o pior.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Arte

A arte é intenção ou percepção? Até hoje não consigo me decidir sobre a resposta. Sempre que me faço essa pergunta, lembro-me daquela vez em que os alienígenas chegaram à Terra. Como sempre fora esperado que fizessem, pediram-nos que fossem levados ao nosso líder. Foi o que, humildemente, fizemos. Diante dele explicaram, com sinceridade não humana, seus planos: observariam as condições de nosso planeta e de nossa vida, e, dependendo do que vissem, decidiriam o que fazer: tomariam nosso planeta ou iriam embora, deixando tudo como sempre foi. Nosso líder, que era bastante sábio (ou, talvez, bastante ingênuo), escolheu como primeiro destino uma de nossas exuberantes florestas tropicais. Bastou ouvir o canto de nossos pássaros para que os alienígenas decidissem voltar para a solidão infinita do espaço que, afinal, não era tão solitária assim. Nosso líder, satisfeito consigo mesmo, atreveu-se a perguntar o porquê de uma decisão tão rápida e certeira. Os alienígenas então disseram que um planeta no qual os próprios animais eram capazes de fazer arte era demasiado evoluído para que merecesse ser subjugado.

domingo, 28 de abril de 2013

Uirapuru



Um amigo (que soube disso quando foi visitar sua pequena cidade natal) contou-me essa história há pouco tempo, num tom entre verdade triste e mentira enigmática; talvez não haja nenhum outro tom adequado para ela, afinal.

Matias, filho do prefeito da cidade, sempre foi um menino doente. Ao terminar o ensino médio, foi obrigado a trancar-se em casa, devido à fraqueza constante. Isolado, dedicou-se, freneticamente, a ler e escrever, principalmente poesia. Algum tempo depois, reuniu seus poemas e lançou um livro, chamado “Últimos cantos”. Seu pai bancou a publicação e ajudou a distribuir, principalmente entre os antigos colegas de Matias.

Pouco depois veio, terrível e inexplicável, a onda de suicídios. Não muitos, mas o suficiente para abalar a cidadezinha. Não demoraram a perceber que todos os suicidas tinham recebido e, provavelmente lido, “Últimos cantos”. Surgiu o boato de que o livro seria amaldiçoado, vingança invejosa do jovem que não podia viver.

Alguém sugeriu que fossem tirar satisfação com Matias, obrigá-lo a confessar e retirar a maldição. Não o fizeram pelo respeito que seu pai tinha na cidade. De toda forma, pouco depois o próprio Matias morreria também, vítima da doença sem nome que o corroía desde sempre.

A história, como não poderia deixar de ser, me inquietou bastante. Meu amigo me revelou que possuía um dos exemplares de “Últimos cantos” que sobreviveram à tragédia. Não sem um vergonhoso receio, li o livro. É fabuloso. Ao ponto de me deixar sem palavras para descrevê-lo.

Lembrei-me agora do que meu pai me contava sobre o Uirapuru. Dizem que seu canto é tão belo que toda a floresta, em reverência, se cala para ouvi-lo cantar.

O livro de Matias deveria se chamar “Uirapuru”; assim, não haveria mais nenhum suicídio misterioso, nenhuma maldição. Pois poderia haver maior silêncio do que o da morte?

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Teólogo



O tempo sempre foi uma questão central em nossos grandes monoteísmos, polvilhando constantemente problemas na mente de seus melhores pensadores. Desses justos, o maior dos tempos recentes foi, indubitavelmente, Walter Benjamin; entretanto, o título de mais interessante, deve, se há justiça no mundo, ser entregue ao padre argentino Xavier Alonso Müller.

Em 1947, Müller publicou o opúsculo intitulado “Apocalipse e Regresso”, no qual aponta a razão das desgraças humanas: ao invés de estar se aproximando do Fim, o mundo na verdade estaria se afastando dele. Explicando melhor: para Müller, o Apocalipse já teria acontecido há milênios. Nós, homens atuais, somos os descendentes daqueles que, impedidos de alcançar o Paraíso, foram condenados a passar o resto dos tempos na danação, ou seja, na própria Terra. Assim, todos os acontecimentos teológicos importantes dos quais temos notícia seriam meros reflexos distorcidos dos verdadeiros eventos ocorridos antes do Apocalipse, encenações de uma memória teimosamente saudosista.

Diante desse conhecimento revelador, Müller descarta as atitudes mais óbvias: implorar misericórdia a Deus ou orgulhosamente desprezá-lo. Para o padre, isso significaria apenas a manutenção das atitudes arquetípicas: fé intranscendível e ateísmo improdutivo. Sua solução, ao contrário, é muito mais refinada.

Müller propõe que a humanidade concentre todos os seus esforços no avanço científico até alcançar o nível tecnológico necessário para criar uma máquina do tempo. Dessa forma, seria possível levar, mesmo que de pouco em pouco, toda uma agora consciente humanidade para a época pré-apocalíptica, garantindo finalmente a todos a Salvação irrevogável.

É difícil fazer um comentário final sobre a obra de Müller. Há um, porém, que, em seu leve deboche, sempre me pareceu bastante pertinente: “Apocalipse e Regresso é uma obra exemplar, uma vez que, depois de Auschwitz, o mundo só poderia contar com um Messias que salvasse a humanidade passando a perna no próprio Deus”. 

sábado, 29 de setembro de 2012

Equação


Joaquín Gómez era um grande matemático. E como todo grande matemático, era também um filósofo. Consequentemente, o que Gómez, no fim, buscava, era uma forma de transcendência, que, devido talvez à influência do catolicismo (sempre ele), equivalia, para nosso matemático, à felicidade da raça humana.

Assim, Gómez dedicou grande parte de sua atividade intelectual a encontrar um caminho definitivo para a evolução da humanidade. Este só poderia ser descrito, afinal, através da linguagem matemática, a única que não permitiria dubiedade.

Cabe aqui, para não enganar o leitor, um esclarecimento de ordem cronológica: Gómez era um contemporâneo nosso, um “filho do século XXI”, se é que tal coisa existe.

De modo que o pensamento de Gómez é uma resposta consciente a esse caldeirão fumegante de incertezas no qual cozinhamos. Essa consciência é notável no método do matemático.

A partir de uma longa e minuciosa pesquisa em inúmeros tratados de antropologia e filosofia, Gómez pôde chegar um número de valores privilegiados e negados pela humanidade de maneira geral. Transformados em elementos, tais valores puderam ser organizados na forma de uma equação cuja raiz equivalia à felicidade eterna do ser humano.

Intitulado “O Teorema do Progresso” (El Teorema del Progreso), o tratado de Gómez que apresenta essa equação é uma obra-prima das ciências humanas, matemáticas e da filosofia. Contudo, as editoras não pensaram assim. As universitárias acharam a obra de Gómez uma “brincadeira positivista de mau-gosto”; as comerciais nem se deram ao trabalho de responder.

Sem possibilidades de bancar ele mesmo uma edição, e intentando atingir um público maior, sobrou a Gómez publicar sua obra no formato de um blog. Atualmente, contudo, o link para a página está quebrado. Gómez desapareceu, sua obra não pode ser mais lida, e a humanidade segue seu próprio caminho, em direção a um abismo qualquer.