quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Espelhos


Ao amigo Igor 

Há uma sentença de um heresiarca de Uqbar que diz: “os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número de homens”. Esse é o único dogma de nossa Ordem.

Somos unidos apenas por um voto e uma missão. O primeiro é a castidade; a segunda é a busca e destruição de certos espelhos especiais. Porque apenas alguns espelhos são efetivamente capazes de multiplicar o número dos homens: eles criam novos universos, por meio de um reflexo deformado de nosso próprio mundo.

É possível que o acaso seja regido por uma força maior, como uma loteria mística; em todo caso, nunca sabemos quando seremos sorteados, nem qual será o prêmio. Aquele deveria ser apenas mais um dos odiosos espelhos, idêntico às dezenas que já destruí. Mas ao olhar para o outro lado, tudo mudaria.

De início, pensei ver uma versão mais nova de mim mesmo; mas logo percebi que se tratava na verdade de um filho que eu não tinha. Ele era, portanto, o fruto dos dois maiores Pecados; e, no entanto, após olhar seu rosto – uma mistura de mim mesmo com o infinito – soube logo que faria tudo por ele, qualquer coisa para protegê-lo. Deixei o espelho intacto e fui embora.

Há uma felicidade estranha em pensar no meu filho – esteja ele onde estiver. Mas um dos meus pensamentos mais prazerosos é imaginar se um dia ele também encontrará um espelho que o leve a ver seu próprio filho; e se este também encontrará outro espelho que o permita ver seu filho, e assim por diante, até o fim dos tempos – ou dos espelhos. Penso e sorrio, sabendo que isso é o mais próximo que chegarei da imortalidade.

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