quarta-feira, 4 de julho de 2012

Perpetuum Mobile




Apenas no século XXI foi criada a primeira máquina automática de criar relatos. Seu funcionamento era simples: a partir de uma base primária de narrativas orais recolhidas aleatoriamente (por exemplo, conversas de mesa de bar, historias de pequenos acidentes, depoimentos de testemunhas em estabelecimentos jurídicos, antigos casos amorosos, anamneses médicas, etc.), a máquina era capaz de recombinar trechos dessas narrativas e criar novos relatos de maneira completamente independente.

Contudo, para o próprio espanto de seu criador (um engenheiro alemão chamado Bertolt Gumbrecht), máquina automática de criar relatos passou a incorporar suas próprias criações como componentes de sua base primordial. Alimentada pela própria voz que produzia, a máquina passou a criar histórias independentes da realidade que a circundava, passando ao mesmo tempo a negá-la e a reforçá-la muitas vezes na mesma narrativa contada.

Assim, como o passar do tempo, as narrativas da máquina automática de criar relatos desenvolveram-se paralelamente à história humana, embora uma ocasionalmente antecipasse ou recontasse a outra. Exemplo: em 2262, a máquina criou o relato de um certo engenheiro alemão chamado Bertolt Brecht, inventor de uma máquina automática de criar relatos. A coincidência com a história, contudo, chamou menos atenção do que o “erro” no nome do personagem. Se a máquina produzia narrativas aleatórias ininterruptas, não seria improvável que um dia ela acabaria contando seu próprio nascimento. O “erro”, por outro lado, não deixava de sugerir certa ironia impossível para uma máquina – a não ser, sugeriam os mais misteriosos, que algum tipo de consciência houvesse brotado daquele emaranhado de relatos.

Num futuro mais distante, por qualquer uma das inúmeras razões possíveis, a humanidade acabará consigo mesma. Sobrará, contudo, protegida debaixo dos escombros da civilização, a máquina automática de contar relatos, ainda a criar histórias, a promessa passada de que um dia andamos por sobre a superfície da terra.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Continuidade dos parques


Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à chácara; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns aluguéis, voltou ao livro com a tranqüilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir
descolando-se  linha a linha daquilo que o rodeava e de sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a  palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do monte.

Antes entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara machucada pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela fazia estalar o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e por baixo gritava a liberdade refugiada. Um diálogo desejante corria pelas páginas como riacho de serpentes e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como que querendo retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo  repasso sem dó nem piedade interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Começava a anoitecer.

Já sem se olharem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Da direção oposta ele virou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu, por sua vez, apoiando -se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O  mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam -lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma galeria, uma escada carpetada. No
alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

Participação especial do meu amigo Julio Cortázar. (A tradução não é minha)


quinta-feira, 31 de maio de 2012

Formador


O primeiro grande desejo de Adam Silverman foi ser enciclopedista. Maravilhado, segundo ele mesmo, desde pequeno com a vasta biblioteca paterna, sonhava em reunir tudo o que descobria naquele universo de palavras num só local, compartilhando com os outros sua própria euforia da revelação. As enciclopédias, contudo, já existiam.
Anos mais tarde Silverman doutora-se em filosofia e passa a dar aulas em uma universidade. Mais preocupado com a possibilidade de levar seus alunos a aprenderem a pensar do que com a “produção intelectual” propriamente dita, Silverman ainda segue os propósitos da juventude. Entretanto, a pressão por parte de seus colegas de departamento e o desinteresse generalizado dos alunos o levam a abandonar a carreira. Some por algum tempo.
Volta com um novo projeto: a montagem de grandes obras em formas de musicais que são exibidos na Broadway. Sua estreia, com uma versão das Confissões de Agostinho, é um grande sucesso de público e crítica. A partir daí, faz várias adaptações aclamadas, a mais famosa provavelmente a de Discurso do método, que inclusive contou com Jude Law no papel do Cogito. Acredita finalmente ter alcançado seu objetivo.
Seu sucesso é destruído após uma ousada montagem do Alcorão, que, auxiliado pelo clima político, desperta ódio em diversos setores. Sofre um atentado que quase tira sua vida (cuja autoria foi assumida por um grupo xiita) e pouco depois é processado por anti-semitismo, apesar da sua ascendência hebraica.
Nunca mais realiza montagens. No entanto, segundo revelaram alguns amigos mais próximos, está trabalhando numa versão pornográfica de Ser e Tempo, que deverá estrear ano que vem.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Um mito



Esta história foi recolhida pelo antropólogo francês Jean-Henri Pouillon, quando estudava a tribo boliviana Pachucua.

“Hoje podemos contar, mas nem sempre foi assim. Há muito tempo atrás Tarucacha fez os homens como eles somos; e os ensinou a caçar, a pescar, a tecer e a viver juntos, e tudo o precisamos saber até hoje. Então Tarucacha voltou ao céu, porque estava muito cansado de trabalhar tanto.

Mas, quando depois de descansado, Tarucacha voltou a terra para visitar seus filhos, viu que tudo tinha mudado. Eles tinham tido muitos filhos, e seus filhos também tiveram filhos, isso muitas vezes. Mas nenhum dos novos filhos sabia fazer o que Tarucacha havia ensinado aos primeiros, vivendo como os bichos: andando de quatro patas e devorando uns aos outros.

Foi então que Tarucacha percebeu seu erro: tinha esquecido, talvez pelo cansaço, de colocar uma língua na boca dos homens, que sem poder falar, não conseguiam ensinar seus próprios filhos as coisas que tinham aprendido com Tarucacha. Este, depois de consertar seu erro, teve de reunir todos os seus filhos e ensinar tudo outra vez.

É por isso que, para que os homens jamais voltem a agir como os bichos, falar e andar são as primeiras coisas que  aprendem as crianças. Mas o mais importante: é justamente porque antes não tínhamos língua que hoje podemos saber que isso um dia aconteceu”.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

As últimas palavras


Você provavelmente chegou a este texto através da indicação de algum amigo ou colega seu. Está só no cômodo, de frente para a tela do computador e, mais por falta de alternativa do que por uma opção própria, cultivando o desânimo. Nada mais trivial. Portanto, não se culpe: quem poderia adivinhar que logo hoje seria o dia da sua morte?

O tédio aumenta. Mesmo com boa vontade é impossível não pensar no clichê das palavras lidas. De fato, isto se parece com mais um daquelas obras que avisam sobre a morte do espectador, como um conto de mistério ou um filme de terror sem criatividade. Isso tudo é ficção barata.

No entanto, você não consegue esconder um leve nervosismo; e se isso não for ficção? Não chega a desviar a vista da tela, mas com a visão periférica procura por outras pessoas. A solidão do cômodo parece muito mais forte agora. E será que você não escuta algum barulho estranho?

Sim, um barulho... como um sussurro de algo rasgando o ar.

Você não tem tempo de se virar: a dor – aguda, cruel – o impede de realizar qualquer movimento. O gosto de sangue sobe à boca e você sabe que é real; o que jamais saberá é quem (ou o que) tirou sua vida. No entanto, antes de tudo ficar totalmente escuro, você não consegue deixar de escapar um último sorriso. O sorriso irônico de quem percebe de que as últimas palavras que vêm à sua mente não são suas, mas sim de uma simples ficção barata.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Oráculo



Por duas vezes Giorgos Dimitriou pôde ver sua futura morte. A primeira delas ocorreu após ser recém-admitido em uma orgulhosa escola teosófica de tradição grega devido ao seu incontestável talento para as artes oraculares. Tal visão teria sido motivada por uma arrogância e imaturidade comuns ao temperamento juvenil, e causou um impacto igualmente condizente com tal gênio e com a natureza da informação.

Por muitos anos Dimitriou esquivou-se da lembrança da visão, até que certa melancolia companheira da meia-idade o levou a novamente encarar sua morte. Mas, surpreendentemente, a forma do seu fim havia assumido uma aparência completamente diversa da que possuíra anos atrás.

A segunda visão produziu-lhe um impacto ainda maior. Sabia que o caminho de cada homem havia sido escrito pelos deuses no Livro do Destino desde os tempos imemoriais. Como poderia, então, sua morte ter mudado? Aquela dúvida abalou as crenças de Dimitriou, obrigando-o a um enorme esforço reflexivo imerso na completa reclusão. Até que encontrou a resposta.

Seu Destino não havia mudado, mas sim o próprio Demetriou. As palavras no Livro eram as mesmas; sua leitura delas, outra, uma vez que ele mesmo era outra pessoa: mais velho, mais maduro, mais humilde.

À reflexão seguiu-se a especulação: após alguns anos, Dimitriou sugeriu aos seus colegas da escola que o Livro do Destino poderia ser, afinal, um texto de ficção: seus propósitos seriam inúmeros, menos se referir diretamente à vida dos homens. Escandalizados, seus pares gritaram que se assim o fosse, os deuses seriam mentirosos em vez de deuses. Dimitriou respondeu que tratava do Livro e não dos deuses, mas não foi ouvido: expulsaram-no por heresia.

Depois disso, Dimitriou se mudou para a praia onde permaneceu até morrer, alguns anos mais tarde. A causa foi câncer de pulmão, pois fumava demais e sempre tivera pavor de médicos.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Deus Ex Machina


Jason Morgue, 23, foi encontrado morto na sala de estar de seu apartamento, deitado de barriga para baixo, com a metade inferior do corpo completamente esmagada. À sua frente se encontrava a tv e um console de videogame ligados; a tela exibia a mensagem de game over.

Outros elementos estranhos estavam ligados à surpreendente morte: todas as portas e janelas se encontravam trancadas por dentro, sem sinais de arrombamento; nenhum pertence do cadáver havia sido levado; Jason, estudante universitário “gente boa”, não possuía nenhum inimigo que poderia desejar sua morte.

O mistério ganhou grande repercussão por ser insolucionável. Alguém sugeriu a velha saída do crime-com-portas-trancadas-por-dentro: o assassino teria se escondido dentro do apartamento e esperado o lugar se encher de curiosos para escapar misturado à multidão. Contudo, como ele poderia esmagar a parte inferior de Jason e sair com tal arma do crime sem ser notado? Assim, o assassinato de Jason ficou irresolvido por uma centena de anos, até ser solucionado pelo próprio assassino.

Este se chamava Peter Hoffmann, o inventor da máquina do tempo, e escritor amador de literatura policial, e que, por recolher material para suas obras de recortes jornalísticos, havia se deparado com o caso de Jason. Aconteceu que Hoffmann, no primeiro teste de sua invenção, deslocou-se no tempo mas não no espaço, e seu laboratório estava localizado onde anteriormente era o apartamento de Jason. De modo que a máquina do tempo, um trambolho enorme, “apareceu” bem em cima do jovem que jogava videogame deitado no chão, esmagando metade do seu corpo.

Hoffmann, assustado por ter sido ele o autor do famoso crime insolucionável, teve um ataque de histeria, imediatamente retornando para sua época somente para destruir sua criação e abandonar a literatura policial.

O que foi realmente uma lástima, pois até que ele escrevia bem.