quarta-feira, 29 de junho de 2011

Herdeiros de Lycaon

A licantropia é um fato. Porém, ao contrário do que se pensa, não se trata do velho mito do homem que se transforma em lobo; muito menos da neurose que faz o homem pensar ter sido transformado em animal. Isso seria ótimo, pois ao menos teríamos uma ideia do que estamos enfrentando.

Digo isso porque a licantropia real é ainda um mistério; sabe-se que ela existe, seus efeitos, e nada mais. É assustador pensar que algo tão macabro e comum esteja escondido das pessoas; ou que seja algo tão evidente que as pessoas se recusam a se dar conta.

A licantropia real (que curiosamente só aparece no início do século XX) é a doença que transforma homens em animais, de qualquer tipo, desde que seja mordido pelo bicho. Contudo, ao contrário do mito e da neurose, a transformação é real e irreversível. Mas o mais surpreendente é que o inverso também é válido: um animal mordido por uma pessoa infectada consequentemente se transforma em ser humano.

O maior motivo para a invisibilidade da licantropia são suas próprias vítimas: os párias, homens ou animais. Mendigos, menores abandonados, animais de rua, pragas (me pergunto se Kafka conhecia a doença); esses são nossos licantropos, que se metamorfoseiam de uns para os outros, até acabar sacrificados, anonimamente, como viveram.

A licantropia não é uma alegoria. Antes o fosse, pois assim demonstraria que pelo menos alguém reflete sobre ela – o que abrandaria um pouco minha solidão. Pois não posso negar que ao menos eu resolvi encarar o problema – o qual, na verdade, considero menos uma doença do que um sintoma. Um sintoma, talvez, desses nossos tempos, em que mesmo as mais profundas certezas, tanto as nossas quanto as dos outros, são impiedosamente arruinadas, em favor de uma miséria que não deveria caber a ninguém.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Messias

Essa parece uma história de mau gosto, mas eu só posso dizer que é real. Um dia eu voltava do trabalho (sou carpinteiro, que ironia), quando fui interpelado por um cadeirante exclamando histericamente que eu era o messias. Sou ateu, e no início achei aquilo até engraçado, mas o homem estava tão convicto que abalou meu ceticismo. (Acho que no fim a credulidade depende mais da fé de quem fala do que da de quem ouve.)

De modo que falei, timidamente, “levanta e anda” e, vejam só, o sujeito realmente levantou e andou, me abraçando e chorando que aquilo era um milagre. Achei que fosse um golpe, mas ele me forçou a ir até um hospital público, onde curei uma grande quantidade de doentes e até multipliquei alimentos, pois estavam em falta.

A partir daí fui amado e odiado por alguns. Meus “discípulos” me seguiam pra onde fosse e pediam que eu lhes guiasse. Eu dizia “ como pessoal, se eu não sei o que fazer com a minha própria vida?” e eles entendiam e repetiam “sim Mestre, devemos ser bons uns com os outros!”. Meus “inimigos” diziam “que absurdo, um Jesus pardo!”, e eu dizia “Jesus? Nem eu acredito em Jesus!”.

Mas um dia os milagres pararam sozinhos e o povo parou de me importunar. Meus antigos seguidores (e detratores, provavelmente) transferiram sua fé para o Alacrenil, uns comprimidos vendidos na TV.

Por um tempo me perguntei qual a razão disso tudo. Não recuperei uma fé que nunca tive, nem fomentei uma fé que sempre tiveram. Tampouco ensinei algo relevante a alguém (e o que eu poderia ensinar, além de carpintaria?). Pode ser que no futuro a física, a sociologia ou a história expliquem meu caso. Mas eu, no presente, embora tenha vivido isso, não consigo encontrar sentido algum.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Sonho

O ser humano é mesmo muito engraçado; sempre imaginando significados para as coisas. Lembro-me que há muito tempo ele me fez um deus; deu-me uma família e uma missão. Chamava-nos de Oneiros, e, na verdade, todos os membros dessa ordem eram tentativas de dar conta do que sou.

Posteriormente, quando ficou muito senhor de si, me fez parte dele mesmo. Reduziu-me àquilo que ele não podia controlar, àquilo que pouco podia entender, mas ainda assim a algo que era ele mesmo. Apesar de minha eterna rebeldia eu podia ser explicado.

Hoje em dia entrou na moda (novamente) a visão mística de mim. Reconhecendo que sou mais do que ele, o ser humano, no entanto, ainda pensa ser capaz de encontrar meu sentido, inclusive achando que eu posso revelar o que está por vir.

Há, evidentemente, aqueles que não fazem ideia do que sou: lembro-me do caso daquele homem que sonhava um burro, que sonhava outro homem, que por sua vez nada sonhava; e nenhum deles sabia o que era ou o que não era.

Claro que, embora trágica, a história desses três é tão engraçada quanto aqueles que sabem tudo sobre mim. Isso justamente porque, seja na ignorância ou na sabedoria, nenhum deles sabe nada. Afinal, não sou nem alguém que age, nem algo que acontece; sou simplesmente aquilo que passa e que junta, assim como o tempo.

Assim, se meus trágicos amigos soubessem disso, veriam que não existe nem sonhador nem sonhado, mas apenas o sonho, ligando um ao outro e a todos os outros que julgam me saber. E se todos soubessem disso, veriam que não existe nenhum significado em mim, assim como não há nenhum na vida. Pois isso a que chamam de vida não passa da continuação de um sonho, e que será outro sonho, eternamente.

domingo, 29 de maio de 2011

Jogo

Eu e meu amigo Igor iniciamos há algum tempo uma espécie de jogo, com o objetivo de produzir textos para o Cavalinhos: um de nós dois começaria um conto, que seria enviado ao outro para que desse continuação, retornando em seguida ao primeiro e assim sucessivamente, até que tivéssemos um texto completo, sendo a intervenção no texto alheio permitida.

Em pouco tempo terminamos um conto, bastante vulgar (misturava, salvo engano, mitologia, horror e crítica social). Mas antes que concordássemos por uma versão definitiva, um de nós (não lembro quem) resolveu incluir, jocosamente (acredito), um comentário do narrador que resumia, criticamente, o próprio conto. Ato contínuo, o outro incluiu ao comentário uma comparação com outro autor, provavelmente Lovecraft. A resposta veio em forma de uma alteração do texto que o afastava do autor comparado, resultando numa segunda crítica por parte do narrador, reinterpretando o conto.

A partir daí seguiram-se uma série de alterações no conto, que incluíam mudanças no enredo, comparações com outros autores, comentários metaficcionais, sobre os outros autores, referências a textos anteriores e futuros do Cavalinhos, bem como a textos não literários e/ou a acontecimentos que iluminavam (ou não) o conto, e explicações sobre o funcionamento do jogo, que alertavam para a necessidade ou incoerência de uma ou outra alteração.

Não fosse isso o bastante para tornar nosso projeto inicial uma imensa confusão, somou-se o fato de que cada um de nós passou a enviar diversas versões do texto para o outro, muitas vezes copiando seu estilo, ou sem nenhuma alteração, de modo a parecer, por exemplo, que eu havia escrito algo que na verdade havia sido escrito pelo meu amigo. Assim, por mais absurdo que possa parecer, esta é uma das versões de nosso conto; e já não sei dizer se quem a escreve sou eu ou Igor.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Ouroboros

Em 1672 foi publicada a obra do humanista Giovanni Feliciano, De Urobori Interpretatio, na qual o sábio se dedica a encontrar o significado divino do ouroboros, a serpente alada que devora a si mesma. Feliciano parte da interpretação clássica que via na imagem uma representação da infinitude, passando por aquela que privilegia a ação da passagem do tempo sobre o mundo, para daí chegar à conclusão de que o ouroboros representa a pura destruição das coisas, e, consequentemente, o Caos.

A obra exerceu enorme influência nos místicos de sua época, chegando mesmo a fomentar o nascimento de uma ordem totalmente consagrada ao hieróglifo, a Ordem dos Ouroboristas, que se dedicava unicamente, através de procedimentos mágicos, a promover o caos e a destruição das instituições do mundo. Contudo, logo perceberam que os procedimentos adotados não exibiam resultados satisfatórios, e decidiram tomar ações, por assim dizer, mais pragmáticas.

O resultado disso, embora bastante conhecido, é muito pouco reconhecido, já que suas evidências são muito bem camufladas. Por exemplo, sabe-se que Robespierre era um ouroborista, bem como Napoleão. Antes da suástica, o símbolo oficial do nazismo era o ouroboros. Derrida tinha uma primeira edição de De Urobori Interpretatio em sua biblioteca. Em um desses noticiários policiais popularescos, o repórter que entrevistava um estrangulador em série obteve como única resposta a exibição de um ouroboros tatuado.

Pode-se pensar que os ouroboristas fazem de tudo para esconder sua existência e suas intenções. Isso, obviamente, não passa de um erro grosseiro. Aos ouroboristas não interessa o mistério, tampouco a exibição; tudo o que eles buscam é o Caos, puro e destruidor. Por exemplo, você deve ter vindo até aqui esperando encontrar um texto ficcional; eu, no entanto, digo que tudo o que você acabou de ler é a pura verdade. Pronto: o Caos está lançado.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Biografia pequena de Rodolfo Párrega – (Perspectiva)

Rodolfo Vicente dos Santos Párrega nasceu no dia 15 de outubro de 1965, em São Bernardo, SP. Aos três anos já havia lido toda a obra de Marx, Engels, Lênin e Tsé-tung, a maioria em francês e alemão. Em 69, diante da impossibilidade de lutar contra a repressão com os artigos que escrevia para vários jornais de São Paulo e do Rio, entrou para a luta armada.

Entre 69 e 71, participou de diversos assaltos a bancos, ataques a aeroportos, seqüestro de figuras importantes, e atentados a líderes militares, até que seu grupo foi descoberto pela polícia psiônica. Acabou preso, torturado e deportado para a Inglaterra, onde escreveu seu primeiro romance, Terra usurpada, amplamente elogiado pela crítica contemporânea.

Em 72, com sete anos, mudou-se para França e fundou um terreiro de candomblé, tornando-se pai-de-santo. Iniciou um romance com Anaele Zekri, ex-guerrilheiro argelino, e publicou Terreiro vermelho, seu romance de maior sucesso. Em 1973 Zekri foi espancado e morto por um grupo racista extremista, e Párrega publica o drama em dois atos Ódio ódio ódio.

Alguns meses depois, aos 8 anos, Rodolfo Párrega comete suicídio tomando um vidro inteiro de comprimidos para dormir. Ao invés de uma carta, deixa escrita apenas uma pequena nota: “Se realmente houvesse algo que valesse a pena ser dito, não haveria necessidade de dizê-lo”

Hoje em dia sua obra ainda é razoavelmente estudada, principalmente pelos especialistas dos cultural e genre studies. Outros, contudo, consideram sua produção datada e em vias de entrar no absoluto ostracismo, acusando seus defensores de promovê-la por puro interesse ideológico, e etc., etc., etc.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Companhia II

Também não me lembro há quanto tempo estamos juntos; minha memória está cada vez pior. Contudo, julgo isso seja algo natural para quem se encontra na minha situação.

Confesso que no início eu dependia muito mais dele do que ele dependia de mim. Mas entendam: fiquei muito tempo na solidão, sem qualquer tipo de contato com outras pessoas, e aquilo estava me matando (sem sarcasmo). Foi nessa época que o encontrei, ou que ele me encontrou, ou talvez: que nos encontramos.

Desde então não nos separamos mais. Por nada. Não que eu ache isso ruim, mas não sei como ele consegue. Há muito tempo que perdi o pudor (suponho que essa seja outra conseqüência natural), mas ele... Bem, ele também é humano, não é? Mas mesmo assim insiste, de um modo ou de outro. Às vezes diz “dá um tempo!” enquanto se afasta, e eu vou deixando, pois ainda entendo essas coisas. Mas quando está quase indo embora, olha discretamente pra trás, e eu suspiro e o sigo, fingindo, para evitar constrangimentos, que sou quem implora por companhia.

Eu morri, mas não sei o que há do outro lado. Tudo por causa do medo. Não do meu, que, como tudo o que é individual, vai se escorrendo depois que se morre; mas daquele que ele compartilha comigo, junto com todo o resto, pro bem e pro mal.