quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Cérbero


Seguro a maçaneta e respiro bem fundo, preparando-me. Abro a porta: o cheiro é péssimo. Embora seja de manha, tudo é escuridão. O interruptor não funciona; acho que cortaram a energia. Noto que as janelas estão cobertas com folhas de papel coladas; arranco algumas, deixando a luz fazer o ser papel. No chão, roupas sujas, revistas velhas, garrafas vazias e marmitas com resto de comida estragada. Mas só começo a suar frio ao ver as seringas espalhadas.

Vou até o quarto. Há jornais na janela aqui também, e as sombras são quase uma massa só. Uma delas, contudo, se destaca; está jogada sobre algo que deve ser um colchão velho. Sei quem é: reconheceria meu filho em qualquer lugar, mesmo aqui, neste inferno. Ajoelho-me ao seu lado, tento ver se ele está respirando (eu não respiro). Ele volta a cabeça para mim e me olha nos olhos, mas não me reconhece.

É só quando tenho certeza de que a ambulância está vindo que abraço meu filho e choro. Ele está bem. Está doente, está quebrado, mas está vivo.

O som de latidos me desperta; ainda estou segurando a maçaneta. Olho para o lado e vejo a origem do barulho: um cão negro de três cabeças me encara com olhos de ferrugem. As visão deveria me causar horror, mas em vez disso me enche de tristeza; pois nesse momento me dou conta de que de fato estou diante da porta do Hades, do submundo, do inferno, e, inevitavelmente, surge a lembrança daquele aviso do poeta florentino: “deixai toda a esperança, ó vós que entrais”.


Respiro fundo e giro a maçaneta, sabendo o pior.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Arte

A arte é intenção ou percepção? Até hoje não consigo me decidir sobre a resposta. Sempre que me faço essa pergunta, lembro-me daquela vez em que os alienígenas chegaram à Terra. Como sempre fora esperado que fizessem, pediram-nos que fossem levados ao nosso líder. Foi o que, humildemente, fizemos. Diante dele explicaram, com sinceridade não humana, seus planos: observariam as condições de nosso planeta e de nossa vida, e, dependendo do que vissem, decidiriam o que fazer: tomariam nosso planeta ou iriam embora, deixando tudo como sempre foi. Nosso líder, que era bastante sábio (ou, talvez, bastante ingênuo), escolheu como primeiro destino uma de nossas exuberantes florestas tropicais. Bastou ouvir o canto de nossos pássaros para que os alienígenas decidissem voltar para a solidão infinita do espaço que, afinal, não era tão solitária assim. Nosso líder, satisfeito consigo mesmo, atreveu-se a perguntar o porquê de uma decisão tão rápida e certeira. Os alienígenas então disseram que um planeta no qual os próprios animais eram capazes de fazer arte era demasiado evoluído para que merecesse ser subjugado.

domingo, 28 de abril de 2013

Uirapuru



Um amigo (que soube disso quando foi visitar sua pequena cidade natal) contou-me essa história há pouco tempo, num tom entre verdade triste e mentira enigmática; talvez não haja nenhum outro tom adequado para ela, afinal.

Matias, filho do prefeito da cidade, sempre foi um menino doente. Ao terminar o ensino médio, foi obrigado a trancar-se em casa, devido à fraqueza constante. Isolado, dedicou-se, freneticamente, a ler e escrever, principalmente poesia. Algum tempo depois, reuniu seus poemas e lançou um livro, chamado “Últimos cantos”. Seu pai bancou a publicação e ajudou a distribuir, principalmente entre os antigos colegas de Matias.

Pouco depois veio, terrível e inexplicável, a onda de suicídios. Não muitos, mas o suficiente para abalar a cidadezinha. Não demoraram a perceber que todos os suicidas tinham recebido e, provavelmente lido, “Últimos cantos”. Surgiu o boato de que o livro seria amaldiçoado, vingança invejosa do jovem que não podia viver.

Alguém sugeriu que fossem tirar satisfação com Matias, obrigá-lo a confessar e retirar a maldição. Não o fizeram pelo respeito que seu pai tinha na cidade. De toda forma, pouco depois o próprio Matias morreria também, vítima da doença sem nome que o corroía desde sempre.

A história, como não poderia deixar de ser, me inquietou bastante. Meu amigo me revelou que possuía um dos exemplares de “Últimos cantos” que sobreviveram à tragédia. Não sem um vergonhoso receio, li o livro. É fabuloso. Ao ponto de me deixar sem palavras para descrevê-lo.

Lembrei-me agora do que meu pai me contava sobre o Uirapuru. Dizem que seu canto é tão belo que toda a floresta, em reverência, se cala para ouvi-lo cantar.

O livro de Matias deveria se chamar “Uirapuru”; assim, não haveria mais nenhum suicídio misterioso, nenhuma maldição. Pois poderia haver maior silêncio do que o da morte?