quinta-feira, 31 de maio de 2012

Formador


O primeiro grande desejo de Adam Silverman foi ser enciclopedista. Maravilhado, segundo ele mesmo, desde pequeno com a vasta biblioteca paterna, sonhava em reunir tudo o que descobria naquele universo de palavras num só local, compartilhando com os outros sua própria euforia da revelação. As enciclopédias, contudo, já existiam.
Anos mais tarde Silverman doutora-se em filosofia e passa a dar aulas em uma universidade. Mais preocupado com a possibilidade de levar seus alunos a aprenderem a pensar do que com a “produção intelectual” propriamente dita, Silverman ainda segue os propósitos da juventude. Entretanto, a pressão por parte de seus colegas de departamento e o desinteresse generalizado dos alunos o levam a abandonar a carreira. Some por algum tempo.
Volta com um novo projeto: a montagem de grandes obras em formas de musicais que são exibidos na Broadway. Sua estreia, com uma versão das Confissões de Agostinho, é um grande sucesso de público e crítica. A partir daí, faz várias adaptações aclamadas, a mais famosa provavelmente a de Discurso do método, que inclusive contou com Jude Law no papel do Cogito. Acredita finalmente ter alcançado seu objetivo.
Seu sucesso é destruído após uma ousada montagem do Alcorão, que, auxiliado pelo clima político, desperta ódio em diversos setores. Sofre um atentado que quase tira sua vida (cuja autoria foi assumida por um grupo xiita) e pouco depois é processado por anti-semitismo, apesar da sua ascendência hebraica.
Nunca mais realiza montagens. No entanto, segundo revelaram alguns amigos mais próximos, está trabalhando numa versão pornográfica de Ser e Tempo, que deverá estrear ano que vem.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Um mito



Esta história foi recolhida pelo antropólogo francês Jean-Henri Pouillon, quando estudava a tribo boliviana Pachucua.

“Hoje podemos contar, mas nem sempre foi assim. Há muito tempo atrás Tarucacha fez os homens como eles somos; e os ensinou a caçar, a pescar, a tecer e a viver juntos, e tudo o precisamos saber até hoje. Então Tarucacha voltou ao céu, porque estava muito cansado de trabalhar tanto.

Mas, quando depois de descansado, Tarucacha voltou a terra para visitar seus filhos, viu que tudo tinha mudado. Eles tinham tido muitos filhos, e seus filhos também tiveram filhos, isso muitas vezes. Mas nenhum dos novos filhos sabia fazer o que Tarucacha havia ensinado aos primeiros, vivendo como os bichos: andando de quatro patas e devorando uns aos outros.

Foi então que Tarucacha percebeu seu erro: tinha esquecido, talvez pelo cansaço, de colocar uma língua na boca dos homens, que sem poder falar, não conseguiam ensinar seus próprios filhos as coisas que tinham aprendido com Tarucacha. Este, depois de consertar seu erro, teve de reunir todos os seus filhos e ensinar tudo outra vez.

É por isso que, para que os homens jamais voltem a agir como os bichos, falar e andar são as primeiras coisas que  aprendem as crianças. Mas o mais importante: é justamente porque antes não tínhamos língua que hoje podemos saber que isso um dia aconteceu”.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

As últimas palavras


Você provavelmente chegou a este texto através da indicação de algum amigo ou colega seu. Está só no cômodo, de frente para a tela do computador e, mais por falta de alternativa do que por uma opção própria, cultivando o desânimo. Nada mais trivial. Portanto, não se culpe: quem poderia adivinhar que logo hoje seria o dia da sua morte?

O tédio aumenta. Mesmo com boa vontade é impossível não pensar no clichê das palavras lidas. De fato, isto se parece com mais um daquelas obras que avisam sobre a morte do espectador, como um conto de mistério ou um filme de terror sem criatividade. Isso tudo é ficção barata.

No entanto, você não consegue esconder um leve nervosismo; e se isso não for ficção? Não chega a desviar a vista da tela, mas com a visão periférica procura por outras pessoas. A solidão do cômodo parece muito mais forte agora. E será que você não escuta algum barulho estranho?

Sim, um barulho... como um sussurro de algo rasgando o ar.

Você não tem tempo de se virar: a dor – aguda, cruel – o impede de realizar qualquer movimento. O gosto de sangue sobe à boca e você sabe que é real; o que jamais saberá é quem (ou o que) tirou sua vida. No entanto, antes de tudo ficar totalmente escuro, você não consegue deixar de escapar um último sorriso. O sorriso irônico de quem percebe de que as últimas palavras que vêm à sua mente não são suas, mas sim de uma simples ficção barata.