A licantropia é um fato. Porém, ao contrário do que se pensa, não se trata do velho mito do homem que se transforma em lobo; muito menos da neurose que faz o homem pensar ter sido transformado em animal. Isso seria ótimo, pois ao menos teríamos uma ideia do que estamos enfrentando.
Digo isso porque a licantropia real é ainda um mistério; sabe-se que ela existe, seus efeitos, e nada mais. É assustador pensar que algo tão macabro e comum esteja escondido das pessoas; ou que seja algo tão evidente que as pessoas se recusam a se dar conta.
A licantropia real (que curiosamente só aparece no início do século XX) é a doença que transforma homens em animais, de qualquer tipo, desde que seja mordido pelo bicho. Contudo, ao contrário do mito e da neurose, a transformação é real e irreversível. Mas o mais surpreendente é que o inverso também é válido: um animal mordido por uma pessoa infectada consequentemente se transforma em ser humano.
O maior motivo para a invisibilidade da licantropia são suas próprias vítimas: os párias, homens ou animais. Mendigos, menores abandonados, animais de rua, pragas (me pergunto se Kafka conhecia a doença); esses são nossos licantropos, que se metamorfoseiam de uns para os outros, até acabar sacrificados, anonimamente, como viveram.
A licantropia não é uma alegoria. Antes o fosse, pois assim demonstraria que pelo menos alguém reflete sobre ela – o que abrandaria um pouco minha solidão. Pois não posso negar que ao menos eu resolvi encarar o problema – o qual, na verdade, considero menos uma doença do que um sintoma. Um sintoma, talvez, desses nossos tempos, em que mesmo as mais profundas certezas, tanto as nossas quanto as dos outros, são impiedosamente arruinadas, em favor de uma miséria que não deveria caber a ninguém.