sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Sonhador

Todos as noites eu me dedico, involuntariamente, ao mesmo sonho: sou uma espécie de burro ou asno, muito velho e muito cansado, que, após um dia cheio de maus tratos, humilhações e trabalho forçado, deito-me para sonhar que sou um homem. Acontece que, talvez por só existir dentro do sonho de um burro, eu como segundo-homem nunca tenho sonhos, já que quando vou dormir o eu-burro é acordado para mais um longo dia de trabalho, e assim fica até que vai dormir novamente ou eu-mesmo acordo, deixando tudo para trás.

O problema é que ambos os sonhos me parecem tão reais que comecei a me questionar se na verdade eu não era um dos dois sonhados, o burro ou o segundo homem; assim, resolvi descobrir do que se tratava aquilo, se eu realmente era um dos dois (o que me parecia inverossímil), ou o que os dois eram de mim. Por um apego aos clássicos que sempre uso para disfarçar minha ignorância sobre um assunto, procurei meu volume de “As obras completas” e comecei a ler A interpretação dos Sonhos.

Mas minha leitura não se estendeu por muito tempo; pois cedo percebi que eu não era nem o asno humilhado que durante as noites fugia sonhando que era homem, nem o homem idealizado, que no entanto era incapaz de sonhar, mas sim aquilo que ficou perdido entre os dois, e somente no que neles não era possuía existência.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O sonho mais sombrio

livremente inspirado numa peça de David Sylvian

Não acredito que demorou tão pouco tempo – tanto para que o homem conseguisse encontrar um novo lugar seguro para viver, quanto para que este novamente se destruísse.

Foi preciso viajar essa distância infinita para longe do nosso sistema solar para que pudéssemos encontrar um planeta com as condições mínimas para nossa existência – e ainda assim temos que viver debaixo dessa cúpula, tão alta e negra, como se um céu sombrio nos guardasse eternamente.

Mas mesmo diante desse sacrifício todo, a humanidade foi incapaz de aprender com seus erros; e criamos um novo motivo para que nos destruíssemos.

“Não é um novo motivo; é o mesmo, embora com uma aparência diferente” – diz ela, olhando-me num triste misto de medo e resignação. E ela tem razão: é sempre o mesmo motivo que nos destrói, aquilo que por tanto tempo fingimos não ser nosso, o nosso sonho mais sombrio.

“Tudo vai ficar bem”, minto – e a abraço forte, olhando para cima.

O céu está se partindo.